Capítulo 19

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Carise, caída no chão frio, sonha. Visualiza o mesmo rio em que foi deixada quando bebe, mas agora já não é mais uma recém-nascida. Segue pela margem, com os pés dentro da água corrente, gelada, que molha as bordas de sua túnica. Ela escuta alguém que a chama, mas não por Carise, é um outro nome, contudo, não consegue entender a voz suave que sai por detrás das árvores. A água vai ficando cada vez mais fria, os dedos dos pés estão congelando e em desespero tenta identificar o lado de onde vem aquela voz, se está à frente ou atrás dela, então ela paralisa. O frio vai subindo por suas pernas, abdômen e no peito, dificultando a respiração. O chamado fica mais forte e agora é possível identificar o que diz: "Filha... filha..." Ela perde a força e cai na água que de imediato congela até seus cabelos. Sente apenas sua respiração fraca, e de olhos fechados, sente uma pequena luz se aproximando junto com a voz suave: "acorde... filha, acorde, vamos pra casa!"

Ao despertar vê Madelin sorrindo, com uma lamparina acesa bem próxima ao seu rosto. Ela traz uma manta de lã de carneiro e coloca sobre Carise que, realmente, está hipotérmica. Ela a ajuda a se levantar; com a mão livre estende um pedaço de pau para que ela se segure com ambas as mãos e seja puxada. Com a outra mão Madelin continua segurando a lamparina.

Madelin não pode deixá-la partir, embora tenha tentado forçar o esquecimento da menina, mas ao debruçar a cabeça sobre o travesseiro de palha após a saída de Carise, recordou-se de Carmen Lúcia, que na ocasião em que desapareceu foi procurada pela mãe durante a noite toda e não encontrada. Desta vez, ela teve o privilégio de conseguir resgatar a menina, embora não fosse a filha desaparecida, mas a sensação de missão cumprida a assolava. Mesmo sofrida pelas mazelas da vida, não poderia permitir que outra garota se perdesse e pudesse nunca mais retornar, assim como tinha acontecido com sua filha no passado. Teria que se justificar com a sociedade pela presença da menina desconhecida, mas para quem já havia sido alvo de tantos comentários maldosos, saberia formular argumentos suficientes para convencer as pessoas de que se tratava, talvez, de uma parenta distante. Inventaria algo, mas por hora precisa manter Carise a salvo. Por hora, a menina jogada ao chão esteva preenchendo um vazio deixado por Carmen Lúcia como nenhuma outra pessoa veio a lhe proporcionar.

- Você vai morrer se continuar aqui. – diz Madelin.

De pé, Carise tenta trocar os passos, mas está fraca demais para caminhar. Ela nem consegue perceber que junto de Madelin achega-se Derek, que a pega de reflexo no colo quando ela titubeia e vai caindo. Ela apenas passa o braço se segurando pelo pescoço dele e desta forma encosta a testa em seu queixo. Derek chega a afastar a cabeça, pensando que queimaria, mas não, a testa de Carise tem um suave calor, impressionantemente, agradável, deleitável sensação nunca antes experimentada por ele. O toque suave da pele com pele exprime a leveza do carinho, chegando a fazê-lo encurvar o pescoço para sentir outras partes da delicada face da bela moça, roçando-a. Aproximou-se tanto que pode sentir o agradável perfume do louro cabelo lavado com pétalas de rosas. Carise usava um preparado de babosa e lavanda para limpar os fios, quando se banhava com certa frequência num riacho próximo da cabana em que morava, algo bastante incomum entre as pessoas da época, que não tinham esse costume. Também, ela os penteava todos os dias, fato que mantinha os fios macios, num ritual feito pelas manhãs e antes de deitar-se para dormir. Ele estranha não emitir calor ao ponto de se queimarem, mas imagina que ela esteja com a temperatura tão baixa que neutralize a liberação de energia entre eles. Mas não se trata disso, pois Carise tem a homeostase tão equilibrada por seus corações que antagoniza os efeitos adrenérgicos do outro, chegando a regular o fluxo cardíaco contrário, possibilitando tocar ou ser tocada sem que ninguém se queime. Isso acontece pelo fato de ela possuir dois corações, que além de tudo, lhe proporcionava extrema resistência aos exercícios físicos.

O aconchegante colo remete a memória do porto seguro que se instalava pelo abraço do pai de criação de Carise, quando Dartho a recolhia após um tombo ou mesmo para niná-la quando criança. Ela permanece quieta, sentindo a respiração quente que saía pelas narinas de Derek, proporcionando as boas recordações do saudoso pai. Sendo carregada, estava novamente segura e a longa noite que fatalmente culminaria com sua morte pela manhã seguinte teve outro desfecho, ao ser depositada, carinhosamente, sobre o colchão de palha macio em que Derek dormia. Ele, cheio de dúvidas, mas com um sorriso no rosto, depois esticou outra manta de lã no chão da cozinha, apagou as lamparinas e foi dormir. 

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