Capítulo 3

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Quanto ao almoço de hoje, pensei em levar o meu triste sanduíche de creme de amendoim com geleia para a biblioteca, plano frustrado pela séria placa dizendo PROIBIDO COMER.

Uma pena, porque a biblioteca daqui é incrível, até agora a única coisa que eu admitiria ser melhor em relação à FDR. (Na FDR não tínhamos uma biblioteca de verdade, e sim um armário de livros, usado
principalmente para dar uns amassos. Mas a FDR era uma escola pública. Para estudar aqui cobram trocentos milhões de dólares por ano, quantia paga pela nova mulher do meu pai.)

Num folheto sobre a escola está escrito que o acervo da biblioteca foi doado por algum figurão de um estúdio renomado – e todas as
cadeiras são chiques, do tipo que se vê nas revistas de decoração sofisticadas que a nova mulher do meu pai espalha estrategicamente pela casa. "Pornô decoração", diz ela, com aquele sorriso nervoso que deixa claro que só fala comigo porque não tem opção.

Eu me recuso a comer no banheiro, porque é o que as pessoas patéticas
fazem nos livros e nos filmes, e também porque é nojento. Os maconheiros colonizaram o gramado dos fundos, e de qualquer modo não quero sacrificar os meus pulmões no altar da amizade falsa.
Tem aquele negócio esquisito de Karrinho de Kafé, que normalmente teria a ver comigo, apesar do nome idiota: Por que os "K"? Por quê? Mas mesmo que eu voe para lá depois da aula de cálculo, as duas poltronas confortáveis estão sempre ocupadas.

Numa está uma garota esquisita que todo dia usa a mesma camiseta antiga do Batman e calça jeans preta. Ela lê livros ainda mais grossos do que os que costumam me agradar. (Ela está lendo mesmo? Ou os livros são para enfeitar? Qual é, quem lê Sartre por diversão?) A outra poltrona
está sendo revezada por um grupo de garotas que riem alto demais e flertam com a Batgirl, cujo verdadeiro nome é Lauren – o que só sei porque temos aula de inglês juntas.

Naquele primeiro dia fiquei sabendo que a Lauren passou o verão como
voluntária numa colônia de férias para crianças autistas. Não pilotou um liquidificador como eu, de jeito nenhum. Lado positivo: ela não me lançou um daqueles olhares penalizados que recebi do resto da turma quando falei sobre o meu trabalho incrível preparando vitaminas e sucos, mas se bem que isso aconteceu porque ela nem se deu o trabalho de olhar para mim.
Apesar do máximo empenho das garotas, a Batgirl não parece interessada nelas. Faz apenas o mínimo; dá um meio abraço, sem contato visual, e se encolhe depois de cada um, com o esforço custando caro, de algum modo invisível.
(Acho que há muitos abraços e dois beijinhos nessa escola, um em cada
bochecha, como se fôssemos parisienses e tivéssemos 22 anos, não americanos de 16 ainda desajeitados em todos os sentidos.)
Não consigo imaginar por que elas continuam indo até ela, todas as vezes
naquela bolha de felicidade, como se o ensino médio fosse divertidíssimo! Fala sério, preciso repetir? Para a vasta maioria de nós, o ensino médio não é divertido; o ensino médio é o oposto de diversão.
Fico imaginando como deve ser falar usando superlativos como aquelas
garotas: Lauren, você é superengraçada! Na moral. Tipo, a mais engraçada do
mundo!

– Você precisa de um pouco de ar puro. Venha passear com a gente, Laur – diz uma garota loura, e desgrenha o cabelo dela, como se ela fosse uma criança desobediente.
Dar mole aos 16 anos é igual em Los Angeles e Chicago, mas eu diria que as
garotas daqui são ainda mais barulhentas, como se achassem que existe uma correlação direta entre voz alta e atenção.

– Não, hoje, não – responde o Batgirl, educada mas fria.

Ela tem cabelo escuro e olhos verdes. Bonitinha, se você curte aquele ar de
estou cagando e andando.
ela parece mau. Ou triste. Ou as duas coisas. Como se também estivesse
contando os dias para se formar e nesse meio-tempo não fizesse questão de esconder isso.
Pois é: 639 dias, incluindo os fins de semana. Até eu tento esconder isso. Na maior parte do tempo.
Não houve chance de olhar de verdade sem ser percebida, mas tenho quase certeza de que a Batgirl há uma grande possibilidadede que use delineador, o que... Eca! Ou talvez as olheiras realcem os seus olhos,
porque a menina parece cronicamente exausta, como se o sono não fosse um luxo concedido a ela.

– Tudo bem – diz a garota, que finge não ter ficado chateada com a rejeição, mas é óbvio que ficou.
Em resposta, ela se senta no colo de uma garota na poltrona oposta, outra
loura, tão parecida com ela que podem até ser gêmeas, e finge fazer carinho nela. Sei qual é a desse showzinho.
Continuo andando, ansiosa para chegar ao banco perto da porta. Pode ser um lugar solitário para almoçar, mas também é uma área livre de ansiedades. Lá não tem como eu fazer nenhuma besteira.

– O que você está olhando? – rosna a primeira loura para mim.

E ali estão elas: as primeiras palavras que outro estudante me dirige
voluntariamente desde que entrei para o colégio Wood Valley, há duas semanas: O que você está olhando?

Bem-vinda à selva, penso.
Bem-vinda. À. Selva.

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