Quatro

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Meu pai não apareceu para o jantar. Um mordomo nos informou na janta que surgiu um imprevisto e ele havia saído em uma expedição de dois dias. Aparentemente ele só estaria em casa um dia antes da realeza de Bulhart chegar. Vlad estava ficando louco com o amontoado de pessoas que teve que direcionar, ao ponto de implorar ajuda para Alex, o mais organizado de nós. No fim nosso irmão mais velho acabou dando um jeito na coisa toda com um pouquinho de esforço.

Me peguei imaginando a monotonia do castelo assim que a festa de Vlad passasse. O dia após os solstícios era sempre o pior dia. Acordávamos todos com uma dor de cabeça insuportável e o sono desregulado, com o castelo revirado e vazio. Levava um tempo até nos acostumarmos com a vida normal novamente, Vlad sabia dar festas inesquecíveis.

— É melhor você conseguir a fonte de chocolate de volta, ou então vou queimá-lo como minha irmãzinha queimou a floresta oeste!

Ouvi Vlad gritar com algum dos pobres homens que o ajudavam. Um dia inteira havia se passado desde que eu havia incendiado metade da floresta oeste, mas meus irmãos me lembravam como se fosse a uma eternidade. Depois que Barduc correu até a capital pedindo socorro, alguns manipuladores da água usaram o pequeno riacho para multiplicar água, e com a ajuda de alguns manipuladores de vento apagaram o fogo. Ninguém na capital havia dito uma palavra sobre eu ter destruído grande parte da fauna de nosso reino por acidente, ninguém além dos meus irmãos.

— Isso vai se tornar a nova ameaça favorita de Vlad

Kai sussurrou atrás de mim. Seus cachos vermelho-sangue pendiam para baixo das sobrancelhas, quase encostando nos olhos conforme ele mexia a cabeça. Ele brincava com a ponta de um dos meus próprios cachos enquanto me olhava com diversão.

— Me irrite que vou socar esses seus olhinhos verdes.

— Oh não! Se não me queimar vivo vou ficar decepcionado!

Kai imitou uma cara de tristeza projetando o lábio inferior enquanto pousava uma mão sobre o coração supostamente ferido. Ri com escárnio daquela pose de menino ferido. Então lancei um tapa de brincadeira em seu braço, deslizando pelos corredores a procura de algo para fazer. Ele me seguia.

— Sabe, as pessoas me comparam com você, custa tentar ser menos... terrorista?

Franzi o cenho pra ele enquanto mostrava a língua. Sim, era natural pessoas compararem gêmeos, e nos comparavam assim como Alexander e Zander. Mas eu e Kai não éramos tão opostos quanto eles, nós éramos amigos desde que me entendo por gente, sem dúvidas ele era meu irmão mais próximo.

— Você poderia facilitar as coisas para mim sendo menos perfeito.

— Impossível

— Bem possível.

Passamos pela porta de ferro maciço que dava para um campo vasto que usávamos para treinar combate corpo-a-corpo. Kai amava essa aula tanto quanto amava ser adorado. Senti o treinador Dunkan ficar tenso quando me viu. Como se eu pudesse incendia-lo a qualquer momento. Na verdade eu podia, mas não estava afim de dar mais um motivo para meus irmãos pegaram no meu pé. Owen, Arlo e Zander já tinham espadas nas mãos, e estava evidente que Vlad e Alex não iriam aparecer. Me arrisquei a fazer par com Zander, apesar de ele ser muito maior e mais forte, anos de treino me ensinaram a usar a força do oponente contra ele mesmo.

— Não tenha medo cenourinha, eu não mordo. Não você .

Fiz cara de desdém para o apelido que ele havia me dado a anos. Muita ironia Zander caçoar de meu cabelo, idêntico ao seu.

— Digo o mesmo cabeça de fósforo. Quero dizer, menos a parte que eu não mordo. Eu mordo sim.

Avancei contra ele com a espada levantada, desferindo um golpe para distraí-lo. No momento em que ele desviou da espada, chutei seus tornozelos com toda a força, causando um baque com sua queda. Ele levou apenas segundos para se recompor, terra grudada na lateral de seu corpo definido.

Zander avançou com sua espada levantada vazando raiva. Mas eu desviei do ataque, dando um soco em seu estômago. Ele cuspiu sangue por causa do soco firme, mas endireitou a coluna como se não fosse nada. No próximo golpe, acabei em uma dança constante de espadas. O tintinar de aço contra aço feria meus ouvidos, e Zander sabia disso. Meu irmão arrastava o metal da espada dele contra a minha sempre que tinha chance, me causando uma onde de náusea e arrepios. Não pude conter uma careta quando ele fez isso pela décima vez, foi quando ele aproveitou a deixa para dar uma cabeçada em meu nariz. Quando o sangue jorrou pelos meus olhos vi estrelas. A dor latejou por todo o meu rosto, quando levei a mão ao nariz para constatar que ele havia se quebrado. Bruno de raiva e ataquei de novo, dessa vez mais lenta pela dor. Mas ainda era o suficiente. Zander deu um passo em falso, o que foi suficiente para que eu conseguisse dar uma cotovelada em sua coluna o jogando no chão de terra. Assim que ele caiu apontei minha espada para sua nuca.

— Curandeiros!

O treinador Dunkan gritou para nos ajudarem. Homens e mulheres vestidos de branco correram porta a dentro, nos examinando de cima a baixo. Concertaram meu nariz e as costelas quebradas de Zander, nos deixando novinhos em folha para a próxima luta.

Quando finalmente as sessões de luta se acabaram, tudo o que eu queria era um banho. Mas a presença infame de Alex me impediu. Sentado na ponta da minha cama, meu irmão me olhava de cima a baixo com pena.

— O que foi agora?

Perguntei bufando. Pra mim não importava o tamanho da urgência de suas palavras, meu suor e meu corpo cansados imploravam por um banho. Comecei a retirar as roupas mesmo com um irmão indignado na minha frente.

— Papai está louco com você. Ele já tinha ido quando aquele acidente aconteceu, mas não pense que está livre de punições.

Revirei os olhos passando a gola da camisa preta pela cabeça. Já havia escutado esse sermão dele muitas vezes. Quebrar uma janela do palácio ou incendiar meia floresta, o que quer que fosse meu erro, seria punido com horas extras de biblioteca. Horas essas que eu usaria para fugir e caçar com Barduc.

— Eu sei, pisei na bola, não vai se repetir. Posso ir pra banheira agora?

Alexander me olhou incrédulo por um tempo, mas algo o fez se render a um olhar triste é um suspiro. Ele passou as mãos pelo cabelo ruivo pálido perfeitamente penteado enquanto fitava as próprias botas.

— É diferente dessa vez Kali

Pelo jeito deveria ser. Me lembro das poucas vezes em que Alex havia me chamado pelo apelido que mamãe me deu, vezes bem ruins que incluíam a morte da mesma. Os pelinhos da minha nuca se eriçaram conforme eu me aproximava dele. Toquei sua testa com o dedo anelar, uma coisa que nossa mãe fazia conosco também. Significava "você está seguro". Podia se referir a uma relação amorosa livre de traições ou mentiras, uma relação entre amigos, uma pessoa que você escolhesse literalmente protejer... mas para nós agora, significava que era seguro abrir a boca. Alex era seguro pra me contar o que estava acontecendo.

— Você errou feio dessa vez Kali. Papai disse que você vem passando dos limites a muito tempo e... ele tem uma coisa pra te manter na linha assim que ele chegar...

Filha de KibtayshOnde histórias criam vida. Descubra agora