Vinte e seis

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Em algum momento da madrugada, fui achada e alocada na cama do quarto. Acordei envolvida nas cobertas, quase pensando que a noite anterior poderia ter sido um sonho. Mas me dei conta de que os três garotos estavam amontoados em cima do tapete com carrancas mau-humoradas em suas faces. Caberia pelo menos mais um deles ao meu lado sem que precisássemos nos encostar. Mas aparentemente a raiva ainda pairava entre nós. Não sem motivo, claro. Eu me sentia mal por ter enrolado os dois, por ter feito eles brigarem por mim. Me sentia mal de verdade, mas o que eu poderia dizer? Me desculpem por brincar com seu coração Edwin, mas eu me apaixonei por Eliah no momento em que ele aceitou aquela maçã na carroça? Me desculpa por manter Edwin ao meu alcance Eliah, mas eu precisava sentir que tinha opção quando você me rejeitasse? Eu sentia que ele faria isso. E eu sei que não é desculpa, mas se tem algo que Kai me ensinou, foi dar tempo ao tempo. Então eu esperaria que os ânimos se acalmassem para juntar os dois em uma salinha e soltar o que me prendia desde o dia em que os conheci.

Em um piscar de olhos nossa bagagem havia sido cuidadosamente arrumada encima da carroça que nos levaria a Kibtaysh, Edwin e Eliah decidiram ir guiando os cavalos, e os outros três soldados de alta patente que eu ainda não havia visto viajariam na caçamba comigo e Asher. Diante dos chacoalhões da caçamba, eu não podia fazer nada para evitar que meu corpo tremesse. Asher ainda não olhava em meus olhos, como se eu não existisse mais pra ele depois de ter quebrado os corações de seus amigos.

— Quem me achou?

Não precisei explicar a pergunta. Ele entendeu o que quis dizer. Cerrou os dentes quase a ponto de trinca-los antes de responder:

— Eliah tem um dom para gostar de problemas. Ele saiu pra te procurar mesmo com grande risco de nevar. Estávamos todos chateados, mas ele foi o único que realmente foi atrás de você. Edwin não obriga as pessoas a o amarem, mas também não mendiga amor. Diferente de Eliah, o fim é o fim para o príncipe.

Fechei os dedos ao redor do tecido de minha nova calça, tentando esquecer que outros três homens podiam escutar cada palavra do que dizíamos.

— Eu já havia escolhido. Ia dizer pra ele segundos antes de vocês entrarem no quarto.

— Muito lenta.

Suspirei conseguindo realmente relaxar. O tom sarcástico de Asher havia voltado. Ele era um homem difícil, levei tempo para escavar aquela armadura de homem mau pra encontrar o garoto bobão debaixo dela. Me lembro como se fosse ontem de ouvir seu relato sobre o desempenho da soldada Guennya em território inimigo. Seus olhos brilharam, e foi assim que eu percebi que estava apaixonado.

— Posso perguntar quem foi?

Uma pequena onda de interesse surgiu em seu rosto. A sombra de um sorriso ameaçava aparecer, mas ele conteve o suficiente para que eu percebesse mas não dissesse nada.

— Só se você prometer manter segredo.

— Prometo.

— Na língua de Kibtaysh.

Soldados eram ecléticos. Eles conheciam a cultura entre os reinos o suficiente para saber que o dedo anelar na testa era como um juramento de sangue para nós. Então não me surpreendi quando Asher estendeu seu enorme dedo anelar e o encostou cuidadosamente em minha testa. O toque foi breve, mas consegui sentir sua pele áspera, calejada por anos em batalhas.

— Eu queria escolher Edwin. No fundo sei que ele é a escolha mais lógica mas...

— Homens mascarados são mais interessantes?

Asher me interrompe com aquele sorriso sarcástico que aprendi a aturar. Tão fácil como veio, o assunto se vai. Asher sabe quando parar algo antes que exploda, sabe me dar lições em silêncio também. Meu coração finalmente se opôs a minha mente e me fez decidir, mas pela demora perdi a oportunidade. Talvez fosse melhor assim, talvez Edwin se casasse com uma princesa e Eliah com alguma dama de poder. Talvez voltando pra casa eu pudesse me casar com o príncipe Finn afinal, se meu reino dependesse disso.

Pequenos flocos de neve se grudavam no vidro acima da caçamba fechada conforme avançávamos não estrada. Algum guarda cujo o nome eu desconhecia, me passou um cobertor de pele em algum momento do caminho. O sol desceu e eu só me lembro de ter acordado sacolejando no dia seguinte, com Asher me estendendo uma maçã. A neve já cobria grande parte do território, o que tornava as árvores mais grossas e a floresta mais difícil de ler. Tentei me manter quieta mesmo ao perceber a presença de Eliah na parte de trás conosco, provavelmente cansado de segurar as rédeas por um dia inteiro. Ele estava estirado no canto oposto da carroceria, uma mão atrás da cabeça apoiada enquanto opinava sobre alguma coisa com o guarda a sua frente. Meu coração quase saiu pela boca quando ele olhou em minha direção, provavelmente me fazendo ruborizar. Ignorei o aumento de temperatura em meu rosto e me concentrei completamente na maca em minhas mãos, como se ela de repente se tornasse a coisa mais interessante do mundo. Mas isso não impediu os passos dele em minha direção. Senti meu rosto ficar cada vez mais quente, a respiração cada vez mais lenta. Travava uma luta interna para não olhar em sua direção, mesmo que ele já soubesse como me sentia.

— Tem um...

Eliah nunca terminou essa frase. A carroça deu uma brecada brusca que jogou meu corpo contra o dele, fazendo a frase morrer em sua garganta . Eu devo ter batido a cabeça em algum lugar, pois lembro de cenas muito borradas e confusas. Lembro de pegar minha espada e tentar equilibra-la, mas meus joelhos cederam. Senti braços fortes na minha cintura e então fui puxada. Eliah pulou da caçamba comigo em seus braços, acelerando na direção da floresta. Mas algo o fez parar. Caí no chão duro finalmente conseguindo enxergar, tateei a neve ao meu redor em busca de minha faca perdida. Então sem que eu percebesse antes, braços fortes me envolveram novamente, mais fortes do que os de Eliah, mas não tentei lutar. Porque reconheci seu cheiro. Me virei de frente para meu irmão e o apertei com toda a força que me restara. Ainda em lágrimas, peguei seu rosto em minhas mãos e observei aqueles olhos negros úmidos.

— Zander!

Um fio de sangue escapou de seus lábios assim que seus olhos se arregalaram assustados. Então senti o corpo de meu irmão pesar sobre mim. Caímos no chão, e quando minha mente voltou a funcionar, vi Edwin segurando a espada que havia fincado em Zander. Se meu irmão não acordasse, eu o mataria.

Filha de KibtayshOnde histórias criam vida. Descubra agora