Meu corpo não obedecia as ordens do meu cérebro para parar de tremer. Aparentemente os olhos de Eliah não queriam seguir ordens também, mas ele foi firme. Gaguejando, me explicou que havia separado algumas peças de roupa para mim no dia anterior, apontando para um pequeno saco de tecido marrom rechonchudo no canto do quarto. Arrastei o saco rapidamente para trás do biombo e me troquei sem mais delongas. Meu cabelo começava a secar, emaranhado pelos cachos não penteados, quando sai de trás do biombo vestida e me deparei com Eliah segurando um pente como resposta para minhas reclamações. Ainda descalça, contraí os dedos dos pés me forçando a falar algo. Mas nada saiu. Nem de mim nem dele. Me sentei a sua frente na cama cruzando as pernas como ele indicou com as mãos e permiti que meus olhos se fechassem enquanto ele passava o pente firmemente pelos meus cachos, os nós se desfazendo um a um pela agilidade dos movimentos. Mãos experientes com o pente, um guerreiro bom mas um penteador perfeito. Ri com meus próprios pensamentos imaginando quantas vezes ele teve que pentear os cabelos das irmãs.
— O que é tão engraçado? Nunca viu um homem demonstrando habilidades com cabelos?
Ele tentou ser duro, mas notei a risada que segurava sem precisar olhar para o seu rosto.
— Na verdade, meu irmão Vlad é muito bom com essas coisas. Especialmente penteados.
— Posso?
Através do espelho pequeno do quarto, ele faz um sinal para o meu cabelo já penteado, então concordo com seu pedido para arruma-lo. Ainda em um silêncio ensurdecedor, ele habilmente mescla as mechas de meu cabelo, as repuxa e ajeita com cuidado, mordendo o lábio inferior de concentração. Sua visão através do espelho é quase hipnotizante, me sinto imersa na atividade de olhar para seu reflexo atenção. Quando ele acaba, deixando uma coroa de tranças ao redor da minha cabeça vermelha, sinto imensa falta daqueles dedos.
— Eu não quis perder a cabeça... naquele dia.
Disse antes que ele se afastasse demais. Ainda virada para o lado oposto, sinto suas costas se colarem nas minhas. Ele libera um pouco do seu peso sobre mim, nos equilibrando em uma coluna de palavras não ditas.
— Eu sei. Foi minha culpa.
Sua voz não passou de um sussurro. Se eu estivesse um pouco menos perto, não teria entendido. Mas a proximidade nos envolvia, me queimava de dentro pra fora, e ainda não era o suficiente.
— Preciso escutar tudo. Até o fim da história.
Eliah respirou fundo. Provavelmente agradecendo pela posição em que estávamos. Mantive os braços ao lado do corpo, mesmo com a sensação de que precisava uni-los aos do soldado.
— Minha família não sabia do golpe do meu pai. Só ele. Quando minha mãe descobriu, lembro que ele levou um tapa. Ela pesou sua consciência fazendo-o pensar em como seria se o rei de Kibtaysh tivesse tomado essa atitude. Eu era o único herdeiro homem, então o raciocínio lógico foi que seu pai me mataria. Mas ele preferiu me torturar no dia em que... tudo aquilo aconteceu.
Meu pai sempre preferiu tortura. Ele dizia que era satisfatório observar a vítima desejando a morte, indo contra seus instintos de sobrevivência pela dor que sente. Dor emocional também.
— Já haviam pelo menos dois anos do ocorrido da sua mãe quando ele decidiu agir. Como foi um ato de vingança, meu pai não podia devolver sem causar uma guerra. Mas queria. Então uma guerra estourou dentro de casa, entre mim e ele quando ele sugeriu atacar a única filha mulher do rei. Disse que esperaria dez anos para tirar a sua beleza a facadas.
Fiz a conta mentalmente, percebendo que o rei estava dois anos atrasado.
— Então eu disse que não deixaria. E com isso ele me exilou do meu reino e disse que eu só voltaria depois que estivesse vingado, mesmo que contra a minha vontade.
Estremeci por dentro. Dois garotos expulsos de casa pelos erros dos seus pais, e meses atrás, eu reclamava por ter que pagar meus erros com um casamento. Mesmo assim, os dois garotos não eram pessoas amarguradas. Em meio ao sofrimento aprenderam a olhar para as coisas boas, e era disso que eu precisava. Eu precisava de pessoas reais com defeitos reais e passados conturbados. E talvez no começo eu não pudesse entender, talvez o fato de ter crescido com seis irmãos pra me mimar tenha me atrapalhado a ver as pessoas como são. Estive tanto tempo presa em mim mesma, sentindo pena da minha própria história... devia ter entendido desde pequena que cada um tem suas lutas. Sou uma princesa, mas não sou a única. Também não sou o centro das coisas. Dois lindos garotos me ajudaram a entender isso.
Me virei para Eliah na intenção de contar pra ele, de admitir tudo o que sentia. Mesmo que para ele eu não passasse de um pequeno passa-tempo, mesmo que ele só quisesse se divertir durante a viagem. Eu precisava tirar aquele peso de mim. Mas a entrada brusca de Edwin e Asher no quarto me impediram. Eles riam com um enorme balde repleto de sopa, Edwin carregando cinco toneladas diferentes. Corri para ajudá-los na distribuição do líquido, depois nos sentamos chão em toda, pernas cruzadas e sopa no colo.
— Eu sei que seria desconfortável perguntar mas... já escolheu?
Levantei os olhos para Asher assim que notei que era comigo que falava. Ele apontava para Edwin e Eliah, totalmente enrubescidos fitando o chão.
— Ora, vamos. Qualquer um vê a forma que eles olham pra você.
— Cala a boca Asher.
Edwin estava visivelmente incomodado. Eliah pareceu achar algo muito interessante na própria sopa então nem sequer deu a entender que estava prestando atenção.
— Eu só acho que o príncipe é melhor escolha sabe. Joias e tudo mais.
— Asher.
O príncipe grunhiu. Me lembrei de como ele havia ficado incomodado quando sugeri que seu anel era um pedido de casamento. Como ele se ofendeu por considerá-lo o tipo de pessoa que vê o exterior e riquezas, alianças acima de tudo. Edwin não precisava disso. Não precisava de casamentos para consolidar alianças, ele era suficiente. Me atrai por esse lado dele, mas no fundo sempre soube que não passava de uma pequena atração.
— Por que você deixa? Ela não tem o direito de brincar assim com vocês?
Dessa vez o príncipe não me defendeu. Ele não respondeu... nem Eliah. Eles apenas se encararam com a expressão ilegível. Quase sem forças e apetite, falei como se a frase me machucasse:
— Isso não é verdade.
— Você sabe que é. — Edwin falou com uma firmeza que fez meus ossos tremerem— Sabe que parte disso é pura curiosidade. E mesmo assim deixou que nos envolvêssemos dessa forma. Foi cruel.
— Como matar uma cidade inteira?
Soltei antes que pudesse me controlar. Se existia algo de calmo em Edwin se esvaiu assim que falei. Me arrependi na hora, mas não havia nada que eu pudesse fazer para concertar. Vi nos olhos dele como a raiva tomou conta de sua mente, e então subitamente parou quando ele tomou o controle novamente. Algo em mim se quebrou quando percebi que Eliah não falaria. Ele permaneceu encarando a própria sopa, forçando a vista para não desvia-la do próprio prato por nada. Sem esperar por permissão, me levantei do chão do quarto que pareceu imensamente menor, e corri para fora, descendo as escadas da pousada e em um segundo emergindo para a rua quase deserta devido ao horário. Ninguém me seguiu. Naquela noite escura sem lua como iluminação, eu tremia enquanto me encolhia descalça em um dos becos da cidade. E já não tinha certeza se tremia pelo frio da alma ou pelo frio do coração. Eu já não tinha opção.
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Filha de Kibtaysh
ФэнтезиO reino de Kibtaysh é pacífico e harmonioso, até onde se sabe. A família real conjuradora do fogo, leva a paz em suas costas desde muito tempo atrás. Até que ataques direcionados a pontos fracos do reino, fazem todos questionarem a paz pela qual o...