Vinte e quatro

356 33 10
                                    

Confesso que não foi fácil escutar a história de Edwin sem interromper. Confesso que eu nunca entenderia o que é odiar o próprio pai, ou ver os irmãos sofrer por culpa dele. Mas sinceramente não achei justificável tudo o que fez. O erro de Eliah de repente pareceu um erro bobo. Não deixei que ele se explicasse, não dei a chance da dúvida. A noite foi mais confortável do que eu gostaria, ainda me sentia ressentida pela história de Edwin, mas meu corpo parecia querê-lo por perto. E eu havia prometido a mim mesma que aprenderia a amar as pessoas mesmo com seus defeitos. Quando eu visse Eliah novamente, pararia para ouvi-lo.

Ouvir. Engraçado que eu parasse para ouvir o garoto que não falava. Quando disse que Eliah havia se afastado, não quis dizer fisicamente. Ele parecia mentalmente ausente o tempo todo, mas a qualquer chance de escaparmos para alguns beijos ele recobrava a consciência como em um passe de mágica. Em partes eu gostava daquele lado dele doido pelo fogo mas... eu ainda queria alguém para conversar. As vezes eu chegava a pensar que ele demorou tanto para me contar aquilo porque estava se aproveitando o máximo posso dos nossos momentos a sós. Mas como eu havia constatado antes, decidi que todos merecem segundas chances.

— Existe um código de conduta... entre meus soldados... os oficiais mais altos vão nos encontrar na cidade mais próxima porque faz parte do protocolo. Quero que saiba que um deles é Eliah, e se você quiser podemos seguir sem ele.

Enterrei minhas mãos debaixo dos braços tentando parecer despreocupada. Apesar de tudo eu não esperava encontrar Eliah tão cedo, mais uma tarde de caminhada e estaríamos na cidade. Mas além de minha pequena vontade de reconciliação, ainda existia a dor que Edwin vinha enfrentando com sua perna. Eu não podia deixar que aquilo se prolongasse muito mais.

— Certo cenourinha. Por mim tudo bem.

— Então vamos tomatinho.

Como eu disse... uma tarde. O céu laranja nos banhava quando saímos do meio das árvores para uma estrada com algumas casas. Mais à frente dava pra ver o comércio, as tendas ainda abertas e as pessoas gritando coisas umas com as outras. Edwin entrelaçou seus dedos nos meus e me arrastou até a frente de uma taberna, provavelmente que acabara de abrir. Com a ordem de esperar exatamente na porta do lugar, observei o príncipe entrar no cômodo escuro, me contentando em observar o movimento das pessoas ao meu redor. Um vendedor de peixes frescos reclamava algo sobre impostos altos demais com uma mulher alta e rechonchuda. Na cabana a frente um casal de idosos apertava a bochecha de um garotinho acompanhado por uma mulher morena como ele, que afagava seus cabelos.

Varias vezes tentei visualizar minha vida como se minha mãe pudesse estar comigo. Meu primeiro beijo, que foi com um nobre de Kibtaysh em uma das festas de Vladmir, minha primeira vitória nas batalhas com Zander, a primeira vez em que consegui vencer Alex no xadrez, mesmo que no fundo eu soubesse que ele tinha deixado... as vezes sinto um buraco que nenhum dos meus irmãos pode tapar. Nenhum deles, nem Eliah nem Edwin. Por duas semanas, naquele castelo azul, eu tive um leve deslumbre do que era ter uma mãe. Do que era ser uma filha. Com a Rainha.

— Imagino que esteja me esperando.

A voz firme e constante de Asher me acordou dos meus devaneios como um balde de água fria. Um balde bom. Me virei para encarar aquele moreno alto sarcástico que nunca pensei que sentiria falta, então joguei meus braços ao redor da sua cintura e o apertei. Por mais atordoado que estivesse com aquele gesto inusitado, ele me abraçou de volta.

— Você está fedendo. Venha comigo, Eliah vai buscar Edwin na taverna.

Asher espalmou uma mão em minhas costas me conduzindo pelas ruas largas da cidade. Paramos em frente a uma grande casa de dois andares. Logo na entrada, uma senhora já de idade reconheceu Asher e lhe deu uma chave. Subimos uma escada em formato de caracol, e então o soldado usou a chave para abrir uma das portas que se encontravam diante de nós. Girando a maçaneta, Asher se vira para mim constrangido:

— Não temos muito dinheiro sobrando para dois quartos então...

— Tudo bem — o interrompo— só o fato de poder dormir sob um teto já me anima demais.

Lanço um sorriso para Asher e adentramos o quarto. Não é muito pequeno, mas tem apenas uma cama de casal, um biombo e uma banheira, sem repartições, tudo uma coisa só. Reavaliei minha urgência em relação ao banho e decidi que não me importaria de entrar naquela banheira com os garotos no quarto desde que realocasse o biombo para a frente da banheira.

Pedi ajuda para Asher e em poucos segundos já estava relaxando nua naquele paraíso morno. Senti cada tendão e músculo do meu corpo ser relaxado um a um pela água escaldante. Soltei um suspiro de satisfação e afundei ainda mais. Queria que a água fizesse parte de mim. Estava tão concentrada naquela sensação arrebatadora, que mal escutei a porta se abrir. Meus ouvidos imersos não captaram direito o momento em que Edwin e Eliah entraram no quarto.

— Onde está a princesa?

A voz de Eliah fez cada centímetro de pele existente em mim se arrepiar. Me lembrei de quando o proibi de me chamar pelo apelido. Agora o que eu mais queria era sua voz grossa pronunciando meu nome encurtado.

— Relaxando na banheira. Agora sejam educados e não olhem muito pra lá está bem?

Subitamente me senti desconfortavelmente nua naquela banheira. Desejei nunca ter entrado ali com a vergonha que me queimava. Mas a porta se abriu novamente, e escutei um grito dos meninos avisando que sairiam para buscar nosso jantar. Novamente o relaxamento de todo o meu corpo. Contei cinco minutos e decidi sair daquele paraíso morno. Mas não encontrei o tecido que me secaria. Procurei ao meu redor, mesmo me lembrando de tê-lo deixado em cima da cama minutos antes. Bufando, saio da banheira pingando, e desconcentrada mal consigo assimilar tudo o que acontece.

Primeiro meu pé molhado escorrega e desequilibra meu corpo, depois me deparo com a figura de Eliah me encarando como se visse um fantasma, logo em seguida suas mãos estão envolta do meu corpo impedindo a colisão com o chão. Ele pelo visto, não havia acompanhado os meninos. Com o coração a mil e as bochechas fumegando, me solto de seu aperto e alcanço o tecido que enrolo ágil e desesperadamente envolta do corpo. Meu cabelo pinga no tapete formando uma pequena poça de água, mas eu não ligo. Não ligo para a poça no tapete enquanto Eliah me olha daquele jeito petrificado, não quando existem tantas palavras entre nós entaladas em nossas gargantas. Ele não olha para meu corpo, apenas para os meus olhos. E isso é o suficiente para me fazer queimar. Me lembro da sensação dos seus dedos na minha pele e só consigo desejar mais. Só consigo me lembrar de como meu coração havia o escolhido de qualquer forma.

Filha de KibtayshOnde histórias criam vida. Descubra agora