A viagem foi sem dúvidas desagradável . E não foi pelo fato de que fui obrigada a acordar no meio da madrugada para partir, foi pelos olhares furiosos que Eliah e Edwin trocavam. Eu sabia que beijar dois meigos em um dia não teria bons resultados, mas não imaginava que se mostrariam tão rápido. Tentei me concentrar no balanço da carruagem ou nas árvores que começavam a aparecer manchadas de branco. Conjurei uma pequena chama com as mãos quando os meninos começaram a bater os dentes, imaginando que o cocheiro deveria estar em uma situação ainda pior. Fiz o fogo aumentar o suficiente para aquecer quem nos conduzia, e a carroça ao nosso lado repleta de soldados.
— Precisa de ajuda para manter o fogo?
— Ela não precisa da sua ajuda.
— Não estava falando com você invejoso
Joguei a cabeça para trás quase perdendo meu controle do fogo junto com a minha paciência. Eu não podia acreditar no quanto aquele príncipe e aquele soldado formados eram infantis! Eu sei que cometi um erro, mas não é pra tanto.
— Se eu soubesse que vocês garotinhos iam ficar se alfinetando o tempo todo, eu teria beijado Asher.
Os garotos pararam e me olharam atônitos. Tentei esconder o sorriso que se formava dentro de mim. Essa frase foi o suficiente para calá-los por um bom tempo. Mas não o suficiente. Pelo menos quando voltaram a falar, o assunto era planejamento e não uma garotinha que havia brincado com seus sentimentos. Aliás, se fosse parar para pensar nisso, meu arrependimento pelos beijos seria muito maior. Eu não queria comparar os amigos, não mesmo, mas era quase inevitável sentada naquela carruagem literalmente entre os dois. Em questões de sentimentos, Eliah ficava na frente. Conversávamos mais, então de alguma forma existia um laço ali. Mas na questão do toque em si... Edwin era um príncipe, mas enquanto me tocava não pareceu nem de longe um garoto refinado. E eu gostava disso. Sempre tive medo de me casar com um príncipe e ele agir com etiqueta o tempo todo. Mas Edwin fazia meu corpo queimar sem precisar de chamas, me consumia de uma forma que um príncipe com etiqueta não poderia. Eliah era gentil, e eu sentia que poderia me proteger de tudo. Meu coração se dividia ao meio, mas tudo aquilo não era de fato necessário. Não era como se eu tivesse que escolher algum.
— Vamos acampar aqui. Amanhã cedo continuamos.
A carruagem parou assim que a ordem soou pelos lábios do príncipe. Eliah saiu primeiro, oferecendo o braço para que eu descesse , mas Edwin disse que precisava falar comigo. Seja qual fosse o motivo da conversa, eu sabia que não seria tão prazeroso para Edwin quanto a cara de raiva que Eliah tentou disfarçar.
— Precisava disso?
— Não, mas é divertido.
Edwin sorriu tão graciosamente, que foi impossível lembrar o motivo de minha raiva inicial. Mas seu sorriso sumiu tão rápido quanto veio, quando ele começou a me explicar o motivo da conversa.
— Eu tenho uma sugestão, mas se você não quiser não precisa concordar. Não vou te obrigar a fazer nada, nunca. — Assenti, esperando que ele prosseguisse— Quando voltarmos com as alianças, antes que você tentasse tomar o trono eu... imaginei que você poderia visitar os vilarejos mais afastados de Kibtaysh, só pra ver a situação real do povo...
Ele parecia receoso ao falar, como se eu pudesse achar uma afronta que um príncipe de Rithan me ensinasse como lidar com meu povo. Mas Edwin não era arrogante, todos os seus concelhos eram para o bem, e eu já havia aprendido tanto com ele... uma de minhas lições foi aceitar qualquer sugestão que fosse se isso significasse o bem do meu povo. E vê-lo ali, um príncipe que no começo eu pensei ser inimigo, sentado ao meu lado tentando me ajudar a ver meu povo, a melhorar meu reino... isso aquecia meu coração de uma forma que eu não podia descrever. E não tentei. Sabia que palavras não seriam suficientes então me deixei levar pelo momento e o envolvi em um abraço. Ele hesitou por um momento, mas depois cedeu, seus braços se entrelaçando ao meu redor.
Pequenas tendas foram erguidas rapidamente, e com um clique dos meus dedos , fogo apareceu entre os galhos que alguns soldados haviam colocado no centro do pequeno acampamento. Um caldeirão foi colocado sob um suporte acima do fogo, e três soldados se ajudavam para preparar nosso jantar. Me enfiei dentro das peles da minha cabana enquanto terminavam, meus dentes batiam com o frio. Na escuridão da tenda eu observava as sombras se mexerem freneticamente pelo reflexo do fogo, parecendo quase vivas por conta própria. As vozes se misturavam em conversas abafadas ou risadas altas, alteradas pelo vinho. Podia sentir a alegria das pessoas mesmo que nada de extraordinário tivesse acontecido para causar-lhes algo assim.
Mas no acampamento de Edwin sempre fora assim, as pessoas sempre sorriam, como na capital de Kibtaysh. Mas ao contrário da minha cidade, no acampamento os soldados sorriam e seguiam ordens como se não fossem ordens. Eles concordavam e respeitavam cada decisão de Edwin, eles apoiavam seu príncipe, não o serviam como superior mas como igual. Edwin era um líder, um líder que não possuía orgulho quando um simples soldado ou até uma serva decidissem sugerir algo, ele sempre escutava e acatava, considerava o ponto de vista de qualquer pessoa que falasse com ele. Ele era um príncipe ligado ao próprio povo, ele era o povo. As decisões eram tomadas por ele, mas pensadas por cada um. Nunca havia visto um príncipe tão humano, e um povo tão feliz. Mesmo em Kibtaysh , nunca havia visto soldados sorrirem.
— A janta está pronta.
Guennya adentrou minha pequena tenda com certa cautela, mantendo os olhos no chão. Eu a segui até perto da fogueira onde os soldados gargalhavam. Edwin sorria entre eles, seu rosto iluminado pelas cores do fogo. Minha barriga congelou quando nossos olhares se cruzaram e ele me chamou mais para perto. Aceitei uma tijela de sopa que me ofereceram, e caminhei na direção do príncipe. Ele passou o braço pelos meus ombros e me apresentou cada soldado perto de nós, citando seus nomes. Eu me esqueci de todos assim que ele terminou, como ele fazia isso? Uma pontada de vergonha passou por mim. Eu não teria sido sequestrada se conhecesse meus soldados.
— Como faz isso?— perguntei ainda aliviada pela sopa quente que aquecia meu estômago
— A beleza estonteante você diz?
O príncipe brincou enquanto enrolava as pontas do meu cabelo ruivo nos dedos. Seus olhos encontraram os meus, e não pude evitar que um arrepio tomasse conta do meu corpo.
— Como faz eles te seguirem com tanta felicidade? Eles morreriam por você, e ainda por opção!
Edwin se ajeitou na grama cruzando as pernas. Então tocou meu joelho de leve, um toque gentil que quase me fez queimar.
— A questão não é se eles morrem por você, é se você está disposto a morrer por eles. E eu morreria por cada um deles Kalishta, incluindo você.

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Filha de Kibtaysh
FantasyO reino de Kibtaysh é pacífico e harmonioso, até onde se sabe. A família real conjuradora do fogo, leva a paz em suas costas desde muito tempo atrás. Até que ataques direcionados a pontos fracos do reino, fazem todos questionarem a paz pela qual o...