Eu sempre odiei acordar durante a madrugada. Me lembro de correr para os aposentos de Kai todas as vezes em que sonhava com nossa mãe morrendo na nossa frente e tinha que me obrigar a acordar. Lembro-me do frio que tinha que sentir ao passar pelo corredor das torres, do preço que pagava pela pressa de chegar ao quarto do meu gêmeo, saindo do meu sem sapatos. Eu aninhava meu corpo magricelo contra o seu, roubando todo o calor que conseguia.
Mas agora eu já não era aquela garota magricela assustada, era uma mulher crescida irritada com o fato de seu príncipe amar saídas na madrugada. Não me preocupei em arrumar o cabelo, ou me esforçar o mínimo para parecer menos amassada do sono anterior. Eliah não precisava esconder o rosto, e Edwin acordara emanando sorrisos e raios de sol como sempre. Ele passava pelos guardas cumprimentando cada um, lançando sorrisos para as servas que tremiam de admiração. Olhei para o lado para constatar que o oposto acontecia com Eliah. Ele pisava mau humorado, como se seu objetivo fosse esmagar as gramíneas. Mal reparava nas soldadas e criadas que o encaravam apaixonadas, manteve sempre a cabeça levantada em direção da carruagem que nos levaria.
— Algumas pessoas não tem o dom de acordar de bom-humor.
Quando paro para reparar, Edwin já está atrás de mim, sorrindo com a visão de seu soldado irritado, e provavelmente rindo por dentro do meu cabelo que mais parece um ninho de ratos.
— Ninguém acorda como você príncipe.
— Ah eu sei, é um dom!
Quase saltitante, Edwin se dirige a carruagem segurando minha mão. Assim que a porta se fecha, ele respira fundo e olha pela a janela, para o sol laranja que começa a nascer no céu. Parte de mim quer socá-lo por me acordar tão cedo, mas outra parte quer agarrar aquele rosto sorridente de tanta felicidade que ele consegue transmitir. Eliah bufa ao meu lado e cobre a cabeça com as mãos. Mas o príncipe não parece reparar em nada do que se passa dentro da carruagem. Seu olhar está preso a paisagem fora dela, ao sol e as montanhas, a grama e a névoa que se dissolvia aos poucos. Apoiei a cabeça no ombro do príncipe, sentindo o sono voltar aos poucos. Só acordei quando minha barriga roncou de fome, me deparando com um Edwin guloso me estendendo um sanduíche enquanto mordiscava o seu.
— Você babou no meu ombro.
— Desculpa...
As casas da cidade de Elliwe já despontavam no horizonte. Aceitei o sanduíche sentindo minhas bochechas enrubescerem. Foi uma ideia tola me apoiar em um garoto que eu mal conhecia para tirar um cochilo.
— Ah tudo bem. A minha irmã babava muito mais.
Os solavancos da carruagem haviam ficado mais intensos agora. Isso significava que nos aproximávamos da estrada que nos levaria até a cidade. Os cavalos tinham diminuído o ritmo, agora seguiam em uma cavalgada lenda que não nos chacoalhava tanto.
— Você tem uma irmã?
Perguntei animada. Talvez Edwin se parecesse mais comigo do que eu imaginei. Ele era o quarto na linha de sucessão, entendia como era ter irmãos. Será que a irmã dele era mais nova? Eram tantas perguntas que eu mal sabia como começar...
— Tinha.
Algo em suas voz fez eu me sentir em completa escuridão. Por um momento, seus olhos não eram mais os brilhantes e prateados olhos felizes. Carregavam uma tristeza profunda. Grandes olhos tristes. Só nesse momento reparei que Eliah não estava conosco, devia ter descido em algum momento e montado em um cavalo. Éramos só eu e o príncipe.
— Posso perguntar... o que aconteceu?
Pude sentir que o príncipe relutava. Parecia sufocado com algo, pronto pra contar mas com medo do que eu poderia pensar.
— Eu... eu a matei.
Um longo silêncio caiu sobre nós. Ele abriu a boca para explicar, mas fomos interrompidos pela parada da carruagem. A porta foi aberta e uma mão se ofereceu para me ajudar a descer. Eliah me colocou no chão com todo o cuidado que conseguiu, então me vi diante de um castelo azul claro... manipuladores da água. Uma rainha jovem e sorridente correu pelas portas enormes do castelo e jogou os braços envolta do pescoço de Edwin.
— Pequeno! Que saudade de você!
O rei a seguiu em passos largos, parando a uma distância respeitosa, mas oferecendo um sorriso para cada um de nós. Ele estendeu a mão para Edwin assim que sua esposa o largou. Um príncipe e uma princesa de uns treze anos se aproximaram devagar, logo em seguida a herdeira também se juntou a nós. Seus cabelos negros eram lisos e curtos na altura do ombro, seu rosto perfeitamente simétricos e sua postura impecável. Ela tinha olhos castanhos que viajaram diretamente para Eliah, e não saíram de lá por um bom tempo.
— Permita-me apresentar a princesa Kalishta de Kibtaysh.
Eles fizeram uma mesura e então a rainha se aproximou de mim, chamando sua filha.
— Vamos mostrar seus aposentos, os garotos podem se virar não é mesmo?
Sem esperar a confirmação de ninguém, a rainha me conduziu palácio adentro, tagarelando sobre vestidos e decorações de festas, pretendentes e herdeiros. Sua filha nos seguia mantendo os olhos completamente vidrados no caminho a sua frente. Quando paramos, enfrente a uma porta branca alta, a rainha me explicou onde o quarto do príncipe e do meu guarda pessoal ficariam, depois se retirou deixando a filha para trás.
— Aquele guarda mascarado... ele é comprometido?
Foi a primeira coisa que saiu da boca da princesa quando ficamos sozinhas, o suficiente para me enfurecer. Mas não deixei transparecer, afinal, não seria bom matar uma de minhas hóspedes.
— Não sei.
— Ah é que você sabe como é... sei que você deve ter algo com um dos dois, então me avise o que você não estiver usando está bem?
Sem me dar tempo de responder, a garota simplesmente virou as costas e saiu rebolando pelo corredor. Entrei no quarto com fumaça saindo de minhas orelhas. Que tipo de pessoa era ela? Certo, eu não era muito diferente por querer os dois, mas ela mal os conhecia! Não sabia como Eliah podia ser fofo e gentil por baixo daquela carapuça de soldado bruto, e não fazia ideia de como Edwin podia ser compreensivo e amoroso por trás da máscara de príncipe firme. Eu estava me apegando aos dois aos poucos, e isso me assustava. Porque eu sabia que cedo ou tarde teria que tomar uma decisão, mas não tinha certeza de quem eu deixaria partir. Escolhi um livro da prateleira do meu quarto, e permaneci lá até que as criadas aparecessem para me arrumar para o jantar. Me enfiaram em um vestido carmesim e entupiram meu rosto com um pó branco sufocante. Algumas linhas negras de tinha foram desenhadas pelas minhas pálpebras e o resultado foi assustadoramente bom. Depois me colocaram sapatilhas e me escoltaram até o salão.
O salão de jantar era todo azul. As mesas e cadeiras compartilhavam um tom leve de prateado, os convidados se viravam para me ver entrar. Eu era a única ruiva do lugar. Eliah já esperava de pé ao lado da cadeira onde eu me sentaria, Edwin se sentaria ao meu lado. O rei e a rainha já estavam sentados com o príncipe e a princesa mais novos, só faltavam Edwin e a herdeira Emory. Eu não relacionei as coisas. Não desconfiei de nada até que o rei disse que poderíamos comer, pois os dois iriam demorar.
Olhei para Eliah com dúvida, mas seu olhar estava fixo na porta. Contei exatamente doze minutos, e então a princesa Emory entrou com um braço enganchado em Edwin. Algo se corroeu dentro de mim, provavelmente transparecendo para fora, mas eu não ligava mais. Não havia nem um dia que estávamos naquele castelo e Emory já havia se jogado nos braços de Edwin? O que mais eu teria que aturar nos próximos dias?
O príncipe mal me olhou quando tomou seu assento na mesa ao meu lado. Tentei desviar a atenção para a codorna assada em meu prato, mas meu estômago se revirou em enjoo. Tudo piorou quando a princesa colocou a mão no ombro do pai e perguntou:
— Gostaria de um casamento real papai?
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Filha de Kibtaysh
FantasyO reino de Kibtaysh é pacífico e harmonioso, até onde se sabe. A família real conjuradora do fogo, leva a paz em suas costas desde muito tempo atrás. Até que ataques direcionados a pontos fracos do reino, fazem todos questionarem a paz pela qual o...