Não sei o que aconteceu depois da frase da princesa, pois eu já havia apertado o braço de Eliah ao meu lado. Alguns dias atrás, em uma das vezes em que passamos a tarde nos galhos de nossa árvore, eu contei a Eliah sobre meus pequenos surtos de nervosismo. Foi quando ele se ofereceu para ser meu guarda pessoal e combinamos que eu apertaria qualquer parte de seu corpo em silêncio quando sentisse que meu corpo travaria. Agradeci aos céus por esse acontecimento, pois fui arrastada do jantar antes que as lágrimas começassem a cair.
Eliah foi muito paciente comigo. Ele esperou que meu corpo voltasse a funcionar, então me esperou trocar de roupa e me ajudou a tirar toda a maquiagem que meu rosto carregava. Sentada em uma cadeira do quarto, sentia seus dedos arrastarem uma toalha molhada suavemente pelos centímetros de minha pele, retirando cada camada. Ele se mantinha ajoelhado e concentrado, mantendo os olhos atentos, como se forjasse algo importante. Sempre focado, o rosto impassível, as sobrancelhas quase juntas de concentração . De repente me senti uma idiota por ter nutrido esperanças com o príncipe, quando meu foco deveria estar em Eliah. O príncipe era carismático, isso estava claro, e talvez por isso ele conseguisse manipular todos tão bem. Era o fim pra mim, eu fecharia meu coração para qualquer um apartar daquele momento. Não iria mais importar o quanto a pessoa fosse legal e charmosa, as pessoas agora não passariam de um passa-tempo para mim.
Quando Eliah terminou de me limpar, me ajudou a chegar até a cama, mesmo que eu insistisse em dizer que estava bem. Meus músculos já se moviam normalmente, e a insistência dele em me tratar como uma ferida me irritava. Ele insistiu em ficar a noite toda do lado de fora do meu quarto, então não tive outra escolha se não mandar que ele dormisse no sofá dentro do quarto. Não era totalmente desconfortável, mas suas pernas longas ocupavam espaço demais, vazando pelos cantos. Ele resmungava algo sobre preferir dormir em pé enquanto eu ria de sua tentativa frustrada de se ajeitar no espaço pequeno.
Horas se passavam e o sono não vinha. Minha mente por algum motivo começou a resgatar memórias antigas para me atormentar. A saudade dos meus irmãos sempre foi real, mas não ter nada para me distrair tornava a dor muito pior. Dois dias depois do meu sequestro, o príncipe me contou que meus irmãos e meu pai estavam seguros no castelo. Mas esse era o máximo que descobri. Será que algum deles sentia minha falta como eu sentia deles? Me perguntava o paradeiro do Príncipe Finn... ele teria voltado para sua terra natal, para ser prometido a outra princesa bonita? Quando pensei que as dúvidas não acabariam mais, escutei um murmúrio de Eliah:
— Você faz barulho demais nessa cama sozinha.
Me sentei na cama para observar o soldado que havia desistido de deitar no sofá. Estava agora sentado com as mãos cruzadas na frente do corpo. Joguei minhas pernas para o lado da cama e me levantei sentindo o gelado do piso nos meus pés descalços. Me aproximei de Eliah, me sentando ao seu lado para absorver parte do calor de seu corpo.
— Por que esconde seu rosto?
A pergunta saiu antes que eu pudesse segurar, mas não me envergonhei depois de pronuncia-la. Estava cansada demais para discutir os motivos de cada ato da minha mente, então só me entreguei para o que realmente queria. Saber a verdade. Eliah sabia tudo sobre mim, qualquer um sabia. Mas eu não sabia nada além de seu nome e seus gostos, não sabia nada sobre sua linhagem, história ou poderes.
— É uma longa história...
Ele pareceu tentado a contar. Encostei minha cabeça em seu ombro, permitindo que seu braço envolvesse meu corpo em um abraço quente e confortável.
— Não vou conseguir dormir sem saber.
Eliah nos ajeitou ainda mais confortavelmente no sofá, esparramando as pernas para frente, deixando que eu apoiasse meu corpo quase completamente nele. Então ele respirou fundo e começou.
— Eu nasci em uma família muito rica. Tinha duas irmãs mais novas, conjuradoras como eu. Vivíamos bem, tínhamos pai e mãe, um privilégio que poucos do nosso vilarejo possuíam. Meu pai trabalhava com comércio, estava sempre fora de casa e me deixava para cuidar de minha mãe e minhas irmãs. O que não sabíamos era que toda a nossa riqueza era fachada. Nosso pai havia afundado nossa família em dívidas e lutava a anos para pagar. Um dos seus clientes era muito poderoso, e quando meu pai teve que pedir mais tempo para cumprir o prazo, ele se enfureceu...
A mão de Eliah que segurava meu ombro apertou seu toque. Apoiei minha mão em seu peito, encorajando-o a continuar.
— O cliente aproveitou uma noite em que meu pai havia saído e invadiu a casa. Seus capangas me prenderam a uma cadeira e tive que assistir enquanto eles violentavam minhas irmãs e minha mãe, dizendo que elas eram o pagamento. E teria tudo acabado ali. Mas quando eles foram embora, quando minha mãe conseguiu me soltar apesar das mãos trêmulas, eu saquei uma faca da cozinha e corri atrás deles. Pelas costas, consegui enfiar a faca em um deles, mas os outros três eram muito mais rápidos e fortes do que eu quando tinha treze anos.
Estremeci ao ouvir a idade que Eliah tinha quando tudo aquilo aconteceu. Um garoto de treze anos vendo tanta dor, vivendo tanta dor...
— Então dois deles me seguraram enquanto o outro... aplicava a punição.
Cuidadosamente, Eliah se desvencilhou de nosso aperto e colocou minha mão na borda do tecido que cobria sua face. Lancei a ele um olhar confuso, mas ele confirmou com a cabeça. Com toda a cautela que consegui reunir, puxei a máscara revelando finalmente aquele rosto, que eu tanto quis conhecer. Pequenas lágrimas brotaram dos meus olhos quando o vi, lágrimas que ele também produziu. Seu lindo rosto, era marcado por cicatrizes profundas que rasgavam a pele de uma extremidade a outra, todas abaixo dos olhos, cuidadosamente feitas para parecerem horríveis. Mas conhecendo Eliah, sentada ali naquele sofá marrom com aquele garoto de coração bom... aquelas cicatrizes pareciam deixá-lo ainda mais atraente. O significado por trás delas, era o que tornava aquele garoto tão lindo.
— Eles disseram que eu era bonito demais, que tinha olhos azuis demais para ser filho de um homem como meu pai. Então marcaram meu rosto até que eu desmaiasse de dor. Disseram que não me cegariam porque queriam que eu olhasse meu reflexo todos os dias e visse um monstro.
As lágrimas que seus olhos mantinham, rolaram por suas bochechas, incentivaras por sua voz embargada. Rolaram junto com as minhas, e em um minuto eu já tinha envolvido seu pescoço com os braços, já estávamos abraçados e meu coração doía mais.
— Você é a pessoa mais linda que eu já vi.
Eu disse quase sem fôlego. Ele não pareceu acreditar até olhar em meus olhos. Até ver a emoção que eu estava transmitindo, a compaixão que queria demonstrar. Eu estava sendo completamente sincera. Ele era tão lindo, que seu rosto não importava, muito menos seu corpo. Eu queria gritar para o mundo o quanto aquele homem era incrível, o quanto ele merecia o mundo! Mas o que pude fazer se resumiu em um emaranhado de beijos, que nos levaram até o amanhecer. Quase me esqueci da promessa de não me envolver mais. Quase.
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Filha de Kibtaysh
FantasyO reino de Kibtaysh é pacífico e harmonioso, até onde se sabe. A família real conjuradora do fogo, leva a paz em suas costas desde muito tempo atrás. Até que ataques direcionados a pontos fracos do reino, fazem todos questionarem a paz pela qual o...