Vinte

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— Eu era o herdeiro do trono de Orn. Nossos pais estavam em guerra, e uma das manobras do meu pai foi... enviar um subordinado para se infiltrar no castelo...

— E matar minha mãe

Consegui sussurrar.Senti o arco escorregar das minhas mãos. No momento em que meus joelhos vacilaram. Cada movimento me fez voltar para aquela tarde quente em que minha mãe havia morrido. Nos olhos azuis como cristais do homem que havia esfaqueado minha mãe. Olhos como os de Eliah, olhos do povo de Orn. Queria gritar comigo mesma por não ter percebido a semelhança antes. Isla também era de Orn, e seus olhos eram idênticos. Era assim que identificávamos os habitantes de Orn, pelos olhos.

— O que aconteceu com minha família foi uma vingança do seu pai.

— Mereceram! Cada um de vocês! Tiraram a minha mãe de nós vocês ainda estão todos vivos!

Comecei a gritar sem me importar em raciocinar. Ascendi minhas mãos em chamas e parti para cima de Eliah, uma besta feroz completamente irracional. A visão através das lágrimas foi o suficiente para me ajudar a acertar seu peito com a mão flamejante. Ele recuou para o lado mas parte de seu uniforme se desfez em cinzas.

— Kali me escuta!

— Você não tem mais o direito de me chamar assim!

Lancei bolas de fogo em sua direção, que acertaram muito perto. Quase. Minhas lágrimas queimavam minhas bochechas pelo ódio que eu sentia. Me perguntava como pude considerar aquele homem como opção. Levantei a mão novamente mas uma foça invisível me fez parar. Tentei me libertar da corrente de poder que prendia meus braços mas foi em vão. Senti uma picada, e então tudo ficou preto.

Ouvi vozes abafadas, provavelmente a poucos metros de distancia. Então senti o tecido fofo que me envolvia. Senti as maos calejadas no meu rosto, e ainda impossibilitada de abrir os olhos, rezei para que não fosse Eliah. Quando consegui compensar o peso das minhas pálpebras com a curiosidade, me deparei com a rainha afagando meu cabelo, com um sorriso fraco nos lábios. Separei os lábios, mas a sequidão de minha garganta me impediu de dizer qualquer coisa. Corri os olhos pelo quarto que ja era meu a duas semanas, me deparando com as servas que me vestiam e um Edwin preocupado. Assim que seu olhar me encontrou acordada, uma onda de alivio percorreu por seu rosto, e pude notar seus ombros relaxando. Enviei um olhar suplicante para o príncipe, que entendeu o sinal e dispensou todos do quarto, incluindo a rainha. Agora sozinhos, Edwin se aproxima e se senta na ponta da minha cama, longe demais para me ajudar a controlar a onda de tristeza que sei que vai surgir.

-- Voce quase tostou o bosque real.

Edwin disse um pouco despreocupado. Sua voz se forcava a soar descontraída e casual, mas eu sabia que no fundo ele estava com medo de que eu saísse do controle.

-- Aposto que seu charme concertou tudo.

Tentei brincar também, mas minha voz saiu mais pesada do que eu planejei. Em um segundo Edwin estava arrancando os sapatos e se enfiando debaixo das cobertas para se aninhar comigo. Sem mas intenções, apenas carinho. Um carinho que eu sentia tanta falta, de Owen e Kai. Edwin sabia que eu não precisava de beijos, precisava de um alicerce ao qual me agarrar.

-- Quase tudo

Seu cheiro invadiu minhas narinas, um cheiro tao bom que me entorpeceu ate os ossos. Seus braços firmes me mantinham aninhada, suas pernas servindo de apoio para as minhas. Então deixei as lagrimas cairem. Não me preocupei com o que o príncipe pensaria de mim, pois nesse ponto eu já confiava nele. Seria burrice confiar tanto em alguém depois de levar uma facada pelas costas? Provavelmente. Mas minha mente já estava cansada de lutar contra meu coração, e por mais que eu ainda resistisse bem pouco, sabia quem meu coração havia escolhido. E isso me doía mais ainda. Eu havia escolhido Eliah. Antes de tudo aquilo. Antes de saber de seu segredo, antes de passar o resto da tarde com Edwin lendo e interpretando as cenas absurdas dos livros como um teatro muito ruim. Isso foi antes de Eliah me fazer chorar, foi antes de Edwin me fazer rir tão intensamente.

-- Voce nao vai para o baile?

O sol já havia se escondido atras das montanhas de Elliwe, e pelas janelas ja era possível ver alguns convidados em seus vestidos bufantes adentrando o palácio. Mas Edwin permanecia descalço sentado no chão a minha frente com as pernas cruzadas e uma xícara de chá rosa na mão, interpretando uma mulher chamada Joana de um livro qualquer.

-- O que eu buscaria a noite toda naquele baile esta bem na minha frente. Não preciso colocar sapatos para achar.

Sua camisa desabotoada e seu cabelo bagunçado, juntamente com sua calca levantada, davam ênfase no tom brincalhão da frase. Mas algo me dizia que aquilo era mais serio do que ele queria transparecer.

-- O baile não era para você?

-- Para nós cenourinha... Mas avisei a rainha que cuidaria da minha princesa.

Um arrepio bom atravessa meu corpo quando escuto o apelido que Arlo me deu sair de seus lábios. Deixo escapar um sorriso.

-- Sabe, seu cabelo se parece mai com uma cenoura do que o meu

-- Certo. Tomate então.

-- Tomate não!

-- Sim!

Jogo uma das almofadas de minha cama nele em protesto, mas ele a pega facilmente, e a guarda atras das costas. Depois que jogo a segunda almofada, tido se transforma em pequenas corridas pelo quarto, de dois jovens armados ate os dentes de almofadas, atirando sem um objetivo muito claro. Minha barriga ja dois novamente de tanto rir, quando paramos jogados no tapete, gotículas de suor escorrendo pelos rostos.

-- Eliah nao vai mais ser seu guarda particular. Mandei que ele mantesse distancia. Se ele burlar essa regra, você pode incendia-lo. Eu permito.

Um ultimo riso fraco escapou de minha garganta. Talvez pela ideia de fazer Eliah sofrer por sua família. Não, não foi isso que me magoou. Foi ele ter escondido por tanto tempo.

-- Peco desculpas

Edwin se apoiou em um barco para me olhar melhor. Com uma das maos passeou pelas curvas dos meus cachos, me fazendo arquear com a sensação de familiaridade que aquele toque começava a ter para mim.

-- Voce sabia?

-- Não... Eu sabia sobre boatos do que houve com a rainha de Kibtaysh durante a guerra, mas não fazia ideia de quem Eliah é.

Os olhos cinza-claro do príncipe brilhavam como único farol naquela noite escura, refletindo o fogo crepitante da lareira com a mais pura sinceridade que pude ler. Ele me puxou para um abraço, unindo nossos corpos em um emaranhado confuso no chão do quarto. Meu cabelo se misturava com o seu criando um tom único e lindo. E pela primeira vez em muito tempo... me senti em casa.

-- O que faremos agora?

-- Agora somos eu e voce. Seguiremos em frente.

Naquela noite, ate a madrugada, o aperto de Edwin foi o suficiente para me manter confortável e aquecida. Ate a madrugada, não nos preocupamos em arrastar nossos corpos até a cama por um pouco mais de conforto. O chão e os braços dele, para mim eram suficiente. E na madrugada... agradeceríamos por isso.

Filha de KibtayshOnde histórias criam vida. Descubra agora