Trinta e seis

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Minha pequena soneca é interrompida quando a carruagem para bruscamente, lançando meu corpo para frente. Eu ainda estou sentada ao lado da porta, mas minha cabeça rebelde pendeu para o ombro de Finn, que me agarrou antes que eu atingisse o chão. Olho para a janela quando percebo que os raios de sol sumiram, substituídos pelos fetiches que a lua emana, cheia e linda no alto do céu. A porta da carruagem se abre e um guarda com o uniforme real estende sua mão para me ajudar com a descida. Eu a aceito e pulo do veículo para o chão, onde a neve já começa a sumir por conta da falta de nevasca. Mas o frio permanece, me lembrando da falta de um casaco quando meus dentes começam a bater. Sinto uma pele fofa cobrir meus ombros quando Jasper se aproxima de mim com cautela.

— Vamos arranjar algo para você.

Ele sorri, mas sei que parte dele quer perguntar sobre minha proximidade com Finn. Sei também que outra parte dele o impede de interrogar porque acredita que me dar espaço é o certo. Mas não é como se eu tivesse que escolher entre os dois, estou completamente apaixonada por Jasper. Mas Finn... querendo ou não é a decisão mais racional. Caminho pelas tendas já montadas pelos guardas que vieram na frente, procurando a maior, a que eu ficaria com meus irmãos e meu pai. Quando a encontro, corro até a cama maior no centro, onde o rei se encontra estirado com as pálpebras caídas.

— Filha... eu não tinha certeza se... você conseguiria fugir.

Me mantenho de joelhos ao seu lado, apertando sua mão em busca de consolo.

— Eles levaram Alex.

Minha garganta sustenta um nó, que por sua vez sustenta as lágrimas insistentes em meus olhos. Deixo que papai afague meu cabelo com cuidado.

— Seu irmão é inteligente. Ele vai saber como agir.

— Mas e nós? O que faremos? Sabem quem nos atacou? O que queriam?

Zander e Owen param de agitar as cobertas no ar que arrumavam a cama para se encarar. Sinto uma pontada de traição, mas não é como se eu tivesse perguntado a eles, então tecnicamente não me esconderam.

— Foram as mesmas pessoas que atacaram as pequenas aldeias da floresta, seja quem for... obteve ajuda de dentro do palácio.

Engulo em seco já preparando uma nova pergunta, mas sou interrompida pela voz impaciente de Kai.

— Eu vou dormir porque amanhã viajaremos cedo. Quem quiser ficar falando pode se retirar.

Kai se deita em uma das camas menores espalhadas pela tenda e se enrola na manta até ficar totalmente coberto. Não entendo sua atitude desde que voltei, realmente hostil. Mas deixo passar mais uma vez, saindo da cabana em silêncio para aproveitar o ar da madrugada. Praticamente metade do dia eu passei dormindo na carruagem, o sono não chegaria agora. Então me contento em fazer o que faço de melhor: me esconder na mata.

Meus dedos apertam a pele grossa do casaco de Jasper com força, mantendo-a cada vez mais grudada em meu corpo. Recostada em um tronco, afundo até o chão gelado cheio de resquícios de neve, sentindo a grama abaixo dela. Deixo que minha mente se abra e se limpe por um instante. Naquele momento eu me esqueço da confusão em meu reino, do meu dilema amoroso e dos meus irmãos e seus problemas. Naquele momento sou só uma garota que afunda na terra buscando sentir a natureza. Me afundo tanto mentalmente, que me torno a natureza. Sinto o ódio dos soldados que perderam amigos no acampamento ao longe, sinto a dor de meu pai e uma gargalhada que ecoa por algum lugar. Estou tão longe mas ao mesmo tempo tão perto. Sinto algo se desprender de mim quando me dou conta de que, sentir tudo isso só tem uma explicação: eu sou a herdeira do meu reino, a filha de Kibtaysh.

Quando abro os olhos, está nevando. Flocos desenhados minimamente caem do céu, em uma dança leve que me envolve. Me levanto do chão retirando o casaco e as botas, sem me importar com o frio cortante. Sinto a neve entre meus dedos e deslizo por ela, ignorando a dor que queima meus ossos. O frio parece tão acolhedor por algum tempo... que eu danço e danço sem parar. Rodopio embaixo dos flocos e deixo que montinhos de neve se formem acima de minha cabeça, roçando meu nariz avermelhado. Corro os dedos pelos troncos congelados sentindo arrepios pelo corpo. É como tocar minha própria pele. Um movimento, um passo, me faz parar bruscamente a dança e virar na direção do invasor. Kai olha para mim com os olhos arregalados. Depois se aproxima devagar e leva a mão até minha cintura, me induzindo a pousar uma de minhas mãos sob seu ombro. Com os próprios pés Kai retira os sapatos e valsamos. Dançamos pela neve entrelaçados e sem nos preocupar com a dança em si, mas com toda a energia que a floresta emanava sobre nós, toda a beleza do inverno refletida naquele lugar. Deixo que Kai me conduza, procurando esquecer a estranheza entre nossos corpos, contendo a saudade que eu tinha dele daquela forma. Não o Kai indiferente e sarcástico, mas o Kai atencioso e fluido. O Kai inteligente e parceiro, o meu gêmeo ... meu Kai.

Após o que imagino serem longos minutos, paramos ofegantes, um sorriso estampado em cada rosto com bochechas vermelhas. Sinto que meu irmãos está voltando para mim. Estendo uma mão para tocar seu rosto, mas o mesmo começa a ser deformado, como um redemoinho. Me afasto em um pulo, sufocando um grito no fundo da garganta. O rosto para de girar e as feições vão se encaixando aos poucos, revelando o verdadeiro dono do rosto: Lúcios.

— Dança muito bem princesa

Mantenho uma chama acesa em uma das mãos por precaução, mostrando minha intensão de defesa. Mas ele apelas ri quando olha para minha posição de ataque, e caminha até mim diminuindo o espaço entre nós. Me afasto ainda mais, até que minhas costas estejam coladas ao tronco atrás de mim, Lúcios aproveitando para apoiar suas mãos ao ledo da minha cabeça dificultando minha saída.

— Me deixe em paz.

Fecho as mãos em punhos amassando o fogo com o movimento, e uso as mãos fechadas para empurrar o peito de Lúcios para longe. Mas ele nem se move. Solta uma gargalhada e abaixa a cabeça para olhar fundo nos meus olhos. Aqueles olhos de Edwin, porém nada gentis.

— Não quero isso que você pensa princesa, não sou como os outros príncipes daqui que brigam por sua atenção. É você quem precisa de mim.

Filha de KibtayshOnde histórias criam vida. Descubra agora