Vinte e sete

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Cauterizar a ferida não foi o problema. O problema foi esperar que os órgãos internos de Zander não tivessem sido gravemente afetados. Sangue saiu de sua boca, então uma lesão artificial não era opção de palpite. Os soldados pararam de lutar quando perceberam meu grito de desespero, quando perceberam que estavam atacando sem motivo. Edwin tremia com a espada na mão, implorando mil desculpas e insistindo que pensou que Zander estava tentando me molestar, mesmo que seu cabelo ruivo denunciasse sua linhagem real de Kibtaysh.

Ainda faltava um dia de viagem até chegarmos em Kibtaysh, então expulsei Edwin para um dos cavalos dos soldados de meu reino, e mantive o corpo inerte de Zander em meu colo, uma mão mantida em seu coração para garantir que batia. Agora não me importava mais que Eliah permanecesse ao meu lado o tempo todo, não importava que seu desespero por meu irmão fosse evidente. O meu era maior. Se Zander morresse, uma guerra estouraria, não ia importar quem estivesse no caminho. Eu destruiria Rithan e seu príncipe. Nem me lembro de quanto tempo sustentei meu corpo exausto e preocupado antes de apagar. A pancada na cabeça devia ter feito efeito pois só me lembro de acordar deitada no chão, com a visão de Eliah cuidando de meu irmão. Me levantei apressada e corri para eles lutando contra os solavancos da carroça, minha cabeça girando. Zander bebia algo de uma tijela nas mãos de Eliah, estava acordado. Agarrei sua mão freneticamente, o que o fez abrir os olhos cansados para me fitar.

— É melhor ele não tentar se mexer pelas próximas horas... qualquer movimento agora pode causar um sangramento interno. Esse líquido acelera o processo de cicatrização, então até chegarmos ele vai conseguir ser carregado até sua cama sem muitos danos.

Com isso Eliah se levanta e se afasta, tentando nos dar uma pequena e mínima privacidade. Afago o cabelo cor de fogo do meu irmão, mantendo uma das mãos sempre em seu peito, garantindo que seu coração não pare. Sua palidez me assusta, suas pálpebras pesadas me causam calafrios, mas mantenho um sorriso no rosto apenas pelo fato de poder sentir sua respiração. Os cachos de seus cabelos entorno dos meus dedos me causam um arrepio pelo toque aveludado e macio. Sinto seu olhar pesado sobre minhas vestimentas, calça e túnica em vez de vestidos simples e coloridos.

— Você... por que fugiu?

Sua voz não era muito mais que um sussurro. Ele parecia ameaçado a quebrar devido ao esforço, mas sua curiosidade era maior do que a dor.

— Fui sequestrada. E vocês não foram atrás de mim...

A mágoa estava aparente e concentrada em minha voz. Nada poderia apagar o desespero que senti quando se passou uma semana no acampamento de Edwin e meus irmãos não haviam sequer se dado conta de minha ausência.

— Do que esta falando? Todos nós procuramos por você! Todos menos Alex que ficou cuidando do papai!

Sua voz estava tão firme retumbando sobre meus dedos em seu peito, que um medo repentino de que ele pudesse se machucar apenas com o movimento me invadiu. Mas a dúvida acompanhou a invasão, rapidamente tomando conta de mim.

— Cuidar de papai?

— Ele está doente Kali. Está morrendo... ele sofreu muito com a perda... E Kai está praticamente pronto pra assumir o reino.

Uma sensação nova me invadiu. Medo? Ansiedade? Orgulho... tudo se misturava no topo de meu estômago, enquanto eu lutava pra manter a comida dentro de mim. Meu irmão tinha conquistado o povo desde pequeno, cativando sorrisos. Mas se fosse realmente um bom príncipe, devia ter reparado nos danos que nosso pai causava a natureza. Devia concentrar sua atenção não só na capital sorridente como também nas aldeias menores. Até conhecer Edwin eu nunca quis ser rainha, não antes de vê-lo no trono. Não antes de saber como o peso da coroa pode acabar sendo um alívio dependendo de quem a vista. Agora eu sabia do que meu povo precisava, e se Kai não concordasse teríamos ter que lutar pelo trono.

Me arrastei pelos joelhos para o lado de Eliah assim que meu irmão dormiu. O soldado mantinha os olhos no chão, sempre com a posição de "estou a seu dispor".

— Obrigada. Por... ter ajudado meu irmão.

— É o mínimo que posso fazer.

Mesmo através do tecido de sua máscara pude perceber que ele estava ruborizando. Me senti presa ao solo. Queria dizer tudo o que sentia, como havia o escolhido e como senti sua falta mesmo com raiva de suas mentiras. Queria pedir perdão por ser tão injusta, mas não tinha o direito. Havia perdido minha chance, talvez pra sempre, talvez não... mas pelo menos por enquanto. Então me contentei em observar a madeira embaixo de mim estalar com os movimentos brutos que fazíamos. Eliah não tentou dizer nada até que eu caísse no sono novamente, pesada sob o tédio daquela carroça desinteressante.

Chegamos as terras brancas de Kibtaysh quando a lua já estava alta no céu. Um véu fino de neve pura cobria todos os bosques pelos quais passávamos, dando ao reino vermelho um toque de branco. Os sons dos animais era baixos, cobertos pelo inverno rigoroso que se alastraria mas ainda sim eu podia senti-los. Estiquei minha mão para fora da carroça, agarrando uma pequena quantidade de neve em meus dedos que jazia em um pedaço de um galho. Ainda com a mão para fora eu tornei a neve água, então a evaporei, me lembrando das muitas vezes em que Aslo havia me mostrado esse truque. Repeti o feito até que as pontas de meu castelo despontassem no horizonte, causando um inquietação entre os soldados ao meu redor. Me aproximei de Zander novamente e agarrei sua mão até sentir a carruagem parar, até que tive que deixar que Eliah e Asher o carregassem palácio adentro.

Me detive na enorme porta de madeira branca quando avistei meus irmãos em fila, na verdade com três faltando. Alex, Zander e... Arlo. Minha cabeça começou a girar tentando juntar as peças daquele quebra-cabeças que eu nem sabia que existia. A noite da invasão me veio à mente, a noite em que Arlo sumira um pouco antes do ataque. Depois a frase de Zander. Perda. Meu irmão estava morto.

Filha de KibtayshOnde histórias criam vida. Descubra agora