Me senti liberta nos próximos dias daquela semana. Meus irmãos e Jasper estavam tão ocupado no preparo do solstício de inverno, que pude finalmente escapar para a floresta. Reviver cada momento naquele lugar me trouxe lembranças inevitáveis do açambarcamento de Edwin, de tudo o que aprendi lá. Não planejei nada, mas no fundo eu sabia que encontraria pelo menos Barduc no meio daquelas árvores grossas que mantinham lindos passarinhos vermelhos. E como eu havia pensado, lá estava ele... um arco da mão e flechas nas costas, aquela roupa surrada de sempre combinando com o rosto sujo de terra. E ao lado dele... uma pequena garota morena de pele escura que sorria pra ele animada. Senti uma pontada de calor em meu coração, um pequeno alívio
Temi que quando eu o deixasse, ele realmente pudesse sentir algo forte demais por mim, mesmo que não correspondido. E isso me assustava muito, a ideia de não conseguir ser sincera com ele por medo de machucá-lo. Mas vê-lo daquela forma, seus braços se mexendo animados para exemplificar algo enquanto ele fala com o rosto brilhante... Barduc estava mais feliz do que nunca. E eu devia um agradecimento para aquela garota. Por mais saudade que eu sentisse de meu antigo amigo, não faria nada para atrapalhar aquele casal aparentemente tão feliz. Então voltei para o centro da floresta, ignorando a trilha que as pessoas geralmente usavam para retornar a cidade.
Eu sentia a floresta, cada vida que nela habitava. Eu podia dizer onde estava cada passarinho, e com uma mão metida no solo podia sentir os passos de alguém perto demais. Por isso eu andava descalça. Nada lá podia me machucar, era como se a floresta abrisse caminho pra mim. Eu conversava com ela apesar de parecer louca, mas sabia que devia um pedido de desculpas pelo incêndio de um tempo atrás. Em meus pensamentos altos eu murmurava desculpas e promessas de reparar meu erro, dizendo que nunca mais faria nada igual além de protejer aquele lugar com a minha vida. A grama parecia se inclinar aos meus pés em aprovação, mas aquilo não podia ser real. Era apenas minha imaginação. Então passos ecoaram através do chão até chegarem ás solas dos meus pés. Passos firmes que eu reconhecia não serem de Barduc. Usei o impulso da adrenalina para escalar uma árvore alta e esperar pelos invasores. Os passos ficavam mais evidentes, agora refletidos do chão para a árvore até minhas mãos que seguravam o tronco. Cada célula do meu corpo se preparava para um ataque. As folhas se agitavam como para me avisar para tomar cuidado. Quanta imaginação nessa minha cabeça...
Os passos retumbavam mais e mais forte, causando uma onda de medo no fundo de meu estômago. Me encaixei entre dois galhos apertados repletos de folhas agora geladas devido à estação. Mal sentia o vento frio tentando rasgar minha pele enquanto me concentrava nas vozes que começavam a aparecer:
— Tem certeza de que não tem perigo de sermos seguidos?
Minha posição era boa o suficiente para enxergar parcialmente o chão, mas não o suficiente para reconhecer o dono da voz antes que me descobrissem.
— Qual é Pin! A realeza aqui bota fogo na natureza, não se conecta nela!
Inimigos. Reconheci pelo sotaque orniano carregado, que aqueles rapazes não eram dali. Mas conheciam o reino o suficiente antes de pisar aqui, o que fazia deles mais que meros estrangeiros.
— Calados. Um herdeiro do reino pode muito bem senti-la.
Um terceiro garoto falou. Meu corpo inteiro se arrepiou em resposta, contendo o ímpeto de sair correndo pelo temor que aquele homem me causara. O garoto chamado Pin voltou a falar:
— Então é melhor matarmos ele logo.
O medo dentro de mim se intensificou. Aqueles homens iriam matar meu irmão, apenas pelo fato de ele ser o filho do reino. Tentei me esgueirar um pouco para o lado afim de identificar os rostos ali presentes, mas não fui muito sutil. O galho em que eu me apoiava se remexeu demais, fazendo um farfalhar selvagem que denunciou minha posição. Prendi a respiração e enrijeci os músculos do meu corpo, temendo que qualquer outro movimento fosse o meu fim.
— Yanko, pegue meu Machado.
O garoto com voz sinistra ordenou. Então algo pesado e metálico foi arrastado pela grama para mais perto de onde eu estava, me fazendo sentir cada arrepio que a terra sentia com o toque do metal frio. Comecei a sentir o machado ser distanciado do chão, contendo um soluço entre meus dentes cerrados. Uma gota de suor escorregava pela minha testa, nervosismo estampado em minhas mãos escorregadias. Senti um baque no tronco da árvore e tive que me segurar fundo para não me desequilibrar e cair. Ele ia cortar a árvore.
— O que será que tem aí chefe?
Outro baque, dessa vez me obrigando a morder a bainha do vestido para conter um grito. Eu estava encurralada. Tentei olhar ao redor em busca de uma saída, mas eu estava encurralada. Teria que lutar.
— Tem um cheiro bom.
Mais um baque e então silêncio. O machado parou de atingir o tronco e a árvore parou de oscilar. Meu coração errava as batidas mas consegui manter a respiração inaudível.
— Por que paramos?
— Olhe!
Uma pequena criatura se mecha na folhagem do galho ao meu lado. Um pássaro médio vermelho-vivo saiu de trás das folhas guinchando e levantando voo. Alguns músculos do meu corpo começaram a relaxar, aliviados pela ajuda daquele animalzinho irracional. Ou não?
— Ah então era ele. Vamos.
Os homens se afastaram. Não precisei de meus ouvidos quando tinha minha pele em contato com a terra para voltar em segurança para casa. Com o vestido surrado e cheio de grama, os cabelos emaranhados e com pedaços de galhos, me meti no castelo pelas portas da cozinha. Um Vladmir irritado jorrando xingamentos de apressava entre os servos tentando dar ordens sem arrancar os cabelos de frustração. Alex observava ao lado de Jasper, que mantinha os olhos arregalados. Então os olhos do príncipe orniano me encontraram, e antes que eu pudesse disfarçar o rubor que havia me causado, me arrastei para um dos corredores sabendo que ele me seguiria.
— Ainda não foi se arrumar?
Jasper olha para os dedos dos meus pés cheios de terra. Os contraio em protesto enquanto arranco os galhos de minha juba.
— Para que?
Jasper funga perto de mim e franze o cenho. Caminhamos até o meu quarto, parte de mim ciente de que ele teria a ousadia de se convidar a ficar mesmo se eu resolver tomar um banho.
— Para feder menos talvez? O que andou fazendo? Subindo em árvores? — jogo alguns galhos em sua direção, mas ele se esquiva e agarra alguns— em menos de duas horas o baile começa. Acho melhor se apressar.
Havia me esquecido do baile de solstício de inverno do Vladmir. Fiquei tão entretida naquela liberdade, e depois por aquele fato de minutos antes que quase me tomou a coragem... que me esqueci. Então antes que Jasper se oferecesse para me acompanhar, disparei a toda velocidade em meus pés descalços na direção da porta rosa, ansiosa pelo banho quente que Nani e Buni me ofereceriam. Posso dizer que depois de Edwin... até minhas servas passaram a ter mais valor.

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Filha de Kibtaysh
FantasíaO reino de Kibtaysh é pacífico e harmonioso, até onde se sabe. A família real conjuradora do fogo, leva a paz em suas costas desde muito tempo atrás. Até que ataques direcionados a pontos fracos do reino, fazem todos questionarem a paz pela qual o...