Relicário

893 98 11
                                    

Lilian esperara muito, e, finalmente, havia dito adeus ao marido. Rafaella tinha três anos quando o pai partiu para a Europa. "Seu avião subiu tão acima, que permaneceu pendurado nas estrelas." Os dez primeiros anos de Rafaella foram fora da cidade, perto do mar, onde Lili - assim como era conhecida sua mãe - tinha uma casa enorme. Construída em madeira branca e rodeada por um grande jardim que descia até a praia. Thomas, um velho amigo de Lili, vivia num anexo à propriedade. Tratava-se de um artista que tinha ido parar ali, e a quem Lili havia acolhido ou "recolhido" como diziam os vizinhos.

Ele ajudava-a com o jardim, cercas e fachadas de madeira, que pintavam quase todos os anos, a presença dele resultava conversas que varavam a noite. Amigo e cúmplice, para Rafaella era a presença masculina que havia desaparecido anos antes de sua vida.

Aqueles anos de vida foram preciosos. Além do que, sua mãe era sua melhor amiga. Lili ensinou-lhe tudo o que um coração pode amar.

Às vezes, acordava mais cedo, simplesmente para ensiná-la a contemplar a vinda do sol, a escutar os ruídos do dia que nasce. Ensinou-a a distinguir os perfumes das flores. Rafaella conhecia o jardim como a palma de suas mãos, poderia locomover-se por ele, de olhos fechados, inclusive, andando de costas. Nenhum pedacinho lhe era desconhecido. Cada planta tinha um nome.

Uma manhã, no início do verão, Lili sentou-se na cama, junto à cabeceira de Rafaella e começou a acariciar seus cabelos.

- Levante-se, Rafa, venha comigo.

A menina segurou os dedos de sua mãe, as apertou com sua mão e se virou, com a face contra a palma de sua mão. Um sorriso que expressava perfeitamente a ternura do momento, iluminou sua face. A mão de Lili tinha um cheiro que não sairia nunca da memória olfativa de Rafaella. Uma mistura de várias essências de perfume, que todas as manhãs ela aplicava em seu corpo.

- Vamos, querida, temos que fazer uma caminhada com o sol. Espero você na cozinha em cinco minutos.

A menina se vestiu em silêncio - Lili havia a ensinado a respeitar a quietude do amanhecer - e calçou suas botas, pois sabia perfeitamente onde iriam depois de tomar café. Quando ficou pronta, foi para a cozinha.

- Você está bem, Rafa?

- Sim.

- Então, abra os olhos. Lembranças não podem ser efêmeras. Impregne-se das cores e dos materiais. A partir deles desenvolvem-se os gostos e as nostalgias que você terá quando for uma adulta.

- As crianças são tão diferentes assim?

- Acredito que sim. Os adultos têm receios que as crianças desconhecem, poderíamos assim dizer.

- Do que você tem medo?

Ela explicou-lhe que os adultos tinham medo de muitas coisas: medo de envelhecer, medo de morrer, medo do que não tinham vivido, medo de doenças, medo, inclusive dos olhares de olhares de outras pessoas que os julgam.

- Você sabe por que você e eu nos damos tão bem? Porque eu não minto para você, converso com você, como conversaria com um adulto, porque não tenho medo. Confio em você. Os adultos têm medo porque não sabem conversar. Isto é que eu ensino a você. Agora, estamos vivendo um bom momento, composto de uma grande variedade de detalhes: nós duas, esta mesa, nossa conversa, minhas mãos, que você está olhando faz algum tempo, o cheiro desta casa, a decoração que lhe é familiar, a calma do dia que desponta.

Lili levantou-se, pegou o cesto com uma das mãos e deu a outra a Rafaella.

- Vamos querida, está ficando tarde!

E Se Fosse Verdade - GiRafaOnde histórias criam vida. Descubra agora