Parte XII - O reinício da normalidade

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Nunca contei a Vegeta que a nave estava pronta, mas, de algum modo, conseguiu descobrir. Acho que gostava de o ter na cama, à mercê dos meus cuidados e das minhas atenções, que ele escorraçava com veemência. Um dia, descobri o quarto vazio, ligaduras desenroladas e espalhadas pelo soalho. A primeira palavra que me veio à boca foi:

- Casmurro!

Depois, preocupei-me, pois ele ainda não estava totalmente curado.

Encontrei a minha mãe de regador em punho, a aguar os vasos de uma saleta que gostávamos de utilizar para bebericar chá e descontrair com um jogo de cartas, mais aconchegante que o salão principal do edifício. Perguntei se sabia onde estava Vegeta. Sem mostrar qualquer sinal de espanto, respondeu-me calmamente, regando um feto:

- Está a treinar.

- Como é que sabes?

- Foi o teu pai que o disse. Estava a colocar os últimos parafusos no stereo quando ele apareceu a perguntar se a máquina da gravidade já estava pronta. Como o teu pai disse que sim, expulsou-o da nave, dizendo que não queria saber de música para nada. – Colocou uma mão na face, meneando ligeiramente a cabeça, o regador a pingar na outra mão. – O teu pai ficou arrasado. O stereo é muito importante para ele e não consegue perceber o que é que os guerreiros têm contra o stereo.

Mordi o lábio inferior. Agradeci à minha mãe, que voltou à tarefa de regar as plantas, cantarolando satisfeita, esquecendo o assunto do stereo e dos treinos do nosso convidado, e fui procurar o meu pai. Como imaginei estava no laboratório.

- Papa, Vegeta está na nave?

- Sim, querida – respondeu, enquanto soldava umas peças que iria utilizar num projeto de um autómato. Nem se virou para mim. O gato preto estava no seu ombro.

- Existe alguma maneira de comunicar lá para dentro?

- Hai. Vai até à cabina de som e liga o intercomunicador. Preparei uma ligação para a nave, não fosse o caso de precisarmos dela. Por vezes, Vegeta isola-se demasiado. Não consigo compreender aquele rapaz. Não tem outro interesse na vida a não ser combater e treinar.

Deste o episódio do acidente que passara a tratar Vegeta recorrentemente por rapaz. Hoje, por estranho que parecesse, não lhe achei piada.

Entrei no compartimento exíguo que o meu pai chamava de cabina de som. Liguei a consola e não foi difícil encontrar o botão onde se lia "Capsule 3". A nave anterior fora reconstruída, mas o meu pai não considerou chamá-la "Capsule 4". Achou que podia acontecer outro acidente se o fizesse, estaria a desafiar o azar. Apesar de ser um brilhante cientista, movido exclusivamente pela razão, objetivo, lúcido e lógico, tinha um lado supersticioso que adicionava ainda mais cor à sua personalidade fascinante.

Cliquei no botão, o ecrã diante de mim acendeu-se, focando uma imagem avermelhada. No início, não vi mais do que uma parede estriada e uma coluna escura a preencher na totalidade o canto direito. Em frente, uma das escotilhas redondas que circundavam o corpo redondo da nave. Descobri um joystick com uma etiqueta rabiscada manualmente indicando "câmara". Empurrei-o ligeiramente para cima e a imagem moveu-se até apanhar, para além da parede, o chão recortado por enormes quadrados. Aí, Vegeta fazia flexões. Vestia calções de licra, calçava meias e sapatilhas e tinha ainda metade das ligaduras enroladas.

- Vegeta! O que é que tu pensas que estás a fazer?

Ele continuou as flexões, fingindo não me ter ouvido.

- Vegeta! Tu não estás totalmente curado. Se fizeres esforços antes do tempo, poderás nunca curar totalmente. Foi o médico que disse.

Parou, pondo-se de pé. Não se voltava para o ecrã onde aparecia a minha cara.

- E o que sabe o médico sobre como funciona o corpo de um saiya-jin?

- Não deve ser muito diferente do nosso.

- Deixa-me em paz!

- Volta imediatamente para a cama.

Girou ligeiramente o torso e espetou um dedo na minha direção. O movimento fora tão brusco que recuei na cabina, como se o dedo fosse atravessar o ecrã e enfiar-se-me num olho.

- Tu não me dás ordens, mulher!

- E para de me tratar assim. Não sabes que estás a ser indelicado?

Pelos vistos, não se importava nada com isso, pois tornou a voltar-me costas.

- Chamo-me Bulma!! – Gritei, furiosa por estar a ignorar-me.

Assentei ambas as mãos no painel do intercomunicador.

- Estás a ouvir o que te estou a dizer?

Continuou de costas voltadas, a recuperar o fôlego. Umas simples flexões e ficara esgotado. Observei-o a respirar, os ombros subindo e descendo, o tórax a distender-se e a encolher-se. Após o longo momento de silêncio, em que prevaleceu o zumbido que vinha do interior da nave, provocado pela máquina da gravidade em funcionamento, ele disse:

- Já te disse para ires embora.

- Tu és teimoso.

- E tu também, mulher. Estás a importunar-me.

Desliguei o intercomunicador com um soco. Sabendo que ele já não me ouvia, vociferei para o ecrã preto:

- Queres matar-te? Pois, mata-te à vontade, a ver se me importo!

Saí da cabina e do laboratório com uma imensa vontade de chorar e nem sabia bem explicar porquê.

***

A chuva causava-me melancolia. Encostada à janela, colando o nariz na vidraça, distraía-me a ver o pequeno círculo branco que o meu bafo provocava, que depressa desaparecia deixando pequenas gotas causadas pela condensação. Gotas do lado de dentro, chuva do lado de fora. O chá fumegava na caneca que segurava com a mão direita, braços cruzados.

Lá em baixo, no relvado, no meio da cortina fina de água, estava a nave. De vez em quando, as escotilhas acendiam-se com uma luz inesperada. Os relâmpagos esporádicos faziam os meus olhos focar-se ali, imaginando o que aconteceria lá dentro. Não tinha muita história, nem mistério, contudo. Vegeta treinava-se.

Perguntava-me, enquanto me punha a contemplar a nave desde a janela do salão, por que razão o príncipe dos saiya-jin era tão solitário. Quando a sua vida era feita de viagens entre planetas, a cruzar o Universo de um lado para o outro, batalhando sem descanso, compreendia que se refugiasse em si mesmo. Deveria ser um trabalho difícil e cansativo, explorar e arrasar planetas. Mas agora vivia na cidade mais cosmopolita da Terra, onde os acontecimentos sucediam-se e havia milhentas distrações. Para além disso, habitava a Capsule Corporation, a empresa mais famosa de West City e do mundo, privava com a família do conceituado Dr. Brief, poderia usufruir da companhia da bela filha do doutor – Bulma Brief.

- Enfim, há pessoas que não sabem a sorte que têm! – Suspirei criando um círculo maior na vidraça.

Novo relâmpago, a nave oscilou nos pés metálicos. Dei uma cabeçada no vidro, para ver o que ia suceder a seguir. Mas durante largos minutos de chuva, a nave manteve-se sossegada. Não iria haver um segundo acidente. Respirei fundo, aliviada.

Um dia de chuva arrasava-me mais do que qualquer outra coisa. Haveria de ter outros dias iguais àquele, mais tarde, muitos anos depois, com chuva a sério e chuva imaginada. Relembrava um, em particular, com chuva a sério, quando o meu filho chegou ao pé de mim branco como um fantasma e balbuciou:

- O mestre morreu... O meu querido mestre morreu. Eles também o mataram, 'kaasan.

Abracei o meu filho. Não restava mais nada do passado. Estávamos entregues à nossa sorte. Fechando os olhos, desejei ter novamente o dia de chuva em que me sentia triste porque estava entediada e distraía-me a ver a nave de Vegeta a iluminar-se. Andava para trás no tempo e... acho que faria tudo igual. Continuava a ver a nave de longe, afazer e a desfazer círculos na vidraça com o meu bafo, não perturbando os treinos do orgulhoso saiya-jin.

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