Capítulo 1: Sobre não ter planos

189 35 115
                                    

"All this time I was finding myself

And I didn't know I was lost"

(Avicii - Wake Me Up)

Ano 2022

Julho é sinônimo de praia.

Ao menos aqui na Inglaterra, onde temos quase uma obrigação moral de aproveitar a meia dúzia de dias nos quais realmente faz calor.

Okay, estou sendo um pouco dramática, não chove tanto assim por aqui como dizem. Assim como nem todo brasileiro gosta de samba e futebol. Quer dizer, eu gosto de futebol.

Mas enfim, as minhas pretensões neste domingo glorioso são as seguintes: jogar com meus amigos, depois dar um mergulho no mar e encerrar o dia num pub. Isso tudo para comemorar meu aniversário de dezenove anos, que foi na quarta-feira passada.

E é o melhor jeito de ignorar o fato de que todo o resto da minha vida é uma grande merda.

Tá, estou sendo exagerada outra vez, há pessoas no mundo passando fome enquanto eu tenho uma vida confortável e eu não deveria reclamar assim. Mas...

Eu sei lá!

Por exemplo, na manhã do meu aniversário, antes de sair para trabalhar, meu pai me deu um presente: um vestido. Tentei disfarçar, mas por dentro pensei: "Porra, pai! Quase dois anos morando juntos e você dá uma bola fora dessas?!"

Eu conseguiria entender um presente desses se eu ainda morasse no Brasil com a minha mãe e ele ainda estivesse cada vez num país diferente, falando comigo por vídeo uma vez por semana. Mas agora não. Ele teve o tempo necessário para se interessar em me enxergar. E não quis.

Ele me vê como uma cópia da minha mãe, a pessoa mais cor-de-rosa do mundo. Só que eu, Maria Júlia, não sou nem de longe parecida com a dona Regina. Nós duas não temos nada a ver. Ela é loira, eu sou morena, ela é magra, eu sou gorda. Ela não gosta de bebida alcoólica, quase não fala palavrões e é diretora de escola; eu bebo, sou desbocada e nunca fui boa aluna. Ela é toda delicada e organizada e eu sou bruta e bagunçada, em vários sentidos. Mais opostas, impossível.

Para não magoar meu pai, eu disse que o vestido não serviu e que não havia outro do meu tamanho na loja, assim posso trocá-lo por algo mais a minha cara: calças jeans ou uma blusinha decotada. Não é porque eu não gosto de vestido que não gosto de exibir meu corpo, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Gosto é de conforto.

E ele deveria saber disso.

Mas não sabe. Porque nos raros momentos em que estamos em casa ao mesmo tempo, a probabilidade de um de nós estar dormindo é grande.

Agora, por exemplo, estou esparramada no sofá, jogando no celular, enquanto ele ainda nem se levantou. Ouço uma buzina, pego a mochila e corro para encontrar meus amigos.

Amigos é modo de falar. Conheci a Emily no último ano do ensino médio, único que cursei aqui na Inglaterra entre setembro de 2020 e junho de 2021. E, ao contrário do que imaginei, minha inabilidade em manter amizades não era um problema geográfico. No Brasil eu tinha somente uma amiga e de resto, apenas colegas espalhadas entre os eternos grupos de whatsapp: da escola, do inglês, do time de futebol... Pessoas pra trocar piadinhas e fofocas inúteis. Aqui não foi muito diferente.

Emily e eu começamos a nos falar por causa de um trabalho em dupla logo na primeira semana de aula — ela é o tipo de pessoa que anda mais com os garotos — e, como descobrimos um gosto em comum, futebol, a conversa se encompridou.

O despertar do clã MedeirosOnde histórias criam vida. Descubra agora