Capítulo 2: Sobre o passado

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"How long do you want to be loved?

Is forever enough?

Cause I'm never, never giving you up"

(Dixie Chicks – Lullaby)

Quando a Clarinha tinha três anos e pouco, ela acordou no meio de uma noite, assustadíssima. Nós havíamos nos mudado para um apartamento maior, no mesmo prédio, e a porta do meu quarto era de frente com o dela, então fui a primeira a ouvir os gritos incoerentes: "Não pode abraçar!" e "Vovó fica em casa!", tudo naquela linguagem balbuciada que apenas mães, pais e irmãos mais velhos entendem.

E ela não esqueceu o sonho, como é normal com quase todo mundo. Ficou dias falando nisso. A princípio acreditamos ter sido apenas um pesadelo, mas, numa visita à nossa bisavó, a bruxa mais idosa da nossa família, a Clarinha falou de novo que sonhou com "gente de rosto escondido".

Desde quando eu tinha catorze anos e a minha irmã tinha um, nós participamos num clã de bruxas com minha mãe, as primas dela e minha bisavó. Claro, como em toda religião, as crianças vão aprendendo aos poucos os preceitos, através de aulas semanais direcionadas a cada idade. Com o passar dos anos fomos entendendo mais sobre quem somos, fomos conhecendo outras bruxas e outros clãs, festas "pagãs" foram se mesclando com Natais e Páscoas e minha vida não poderia ter seguido mais fantástica e diversa. E sim, vários homens da nossa família sabem que somos bruxas e levam isso numa boa. É a nossa religião, nossa herança, nossa essência.

Pois bem, a bisa Cassandra tem Alzheimer e só consegue ser coerente por alguns minutos por dia, durante o pôr do sol, quando os poderes dela superam a doença. Naquele dia ela tentou conversar com a minha irmã e entender o que o sonho queria dizer, mas não concluiu nada.

Nós não fazíamos ideia do que o mundo começaria a enfrentar alguns dias depois.

E a Clarinha previu tudo.

A mãe da Yasmin, uma das tantas amigas de longa data da minha mãe e que também vem de uma linhagem tradicional de bruxas, nos explicou que a Maria Clara estava desenvolvendo algum poder de clarividência.

Aprendemos que, quando uma mulher começa a treinar as artes da feitiçaria antes da menarca, desenvolve alguma habilidade receptiva e, neste caso, não há consequências para seu uso, pois o poder é passivo. A mãe da Yasmin — Luciana — por exemplo, tem a capacidade de distinguir uma bruxa de uma não-bruxa, através do nosso odor. Foi por isso que se aproximou da minha mãe quando elas estudaram juntas num curso técnico, segundo ela porque temos que nos manter unidas e é raro encontrar outras bruxas.

Já a minha melhor amiga, se estiver com alguém em um lugar que contenha água, consegue sentir os mesmos sentimentos da pessoa. A água funciona como um catalisador para ela e é por isso que eu nunca quis viajar para a praia, ou para algum lugar com piscina com a Yasmin. Tenho medo até de tomar chuva com ela.

Na minha família era a primeira vez que alguém desenvolvia uma habilidade desse tipo. Minha mãe, as primas dela e eu começamos tarde demais a aprender as artes. Acho que minha bisavó também. Clarinha seria a primeira de nós a explorar todo seu potencial, e olha que ela basicamente sentava com outras crianças e pintava desenhos sobre histórias contadas pelas bruxas mais velhas. Imagino como não será quando ela participar ativamente dos rituais.

Por tudo isso, quando ouço Tiago me dizer que minha irmã teve um sonho, só consigo pensar que se trata de algo grave.

— Ela sonhou com o que? — pergunto por reflexo, mas não tenho certeza se quero saber a resposta.

O despertar do clã MedeirosOnde histórias criam vida. Descubra agora