𝑻𝒓𝒐𝒄𝒂 𝒅𝒆 𝒇𝒂𝒗𝒐𝒓𝒆𝒔☺︎︎

791 102 5
                                    

Começo a achar que estamos trocando muito mais do que meros favores.

Devo ter dormido em algum momento. A  última coisa que me lembro foi de ter  o corpo do Calvin embaixo do meu; sua  pele quente e as mãos macias me  acalentando, tentando amenizar a angústia que se instalava no meu peito. Confesso que facilitou muito. Não conseguia sequer imaginar como aquela noite seria se o meu vizinho não estivesse comigo.

Minha cabeça pilhada havia desistido  de raciocinar. Ia explodir se continuasse juntando os meus problemas, sentindo a força deles sem uma separação sóbria. Vovó sempre dizia que todo problema tinha solução, desde que ele fosse tratado como único. Achei que era a minha obrigação acatar seus bons  conselhos (não que em algum dia eu a  tenha desobedecido ou duvidado de suas palavras, sou o neto mais bonzinho do mundo).

O mais incrível foi quando acordei e, um pouco assustado, descobri que o Calvin estava ao meu lado na minha cama, dormindo calmamente (usando short e a camisa branca de manga comprida que pertencia a ele e vivia em cima do meu travesseiro). Ainda dividíamos o edredom. Fiquei o observando durante longos minutos. Cada detalhe seu foi minuciosamente analisado, e a  minha  conclusão gerou um sorriso  diferenciado instalado em meu rosto.

Sentindo-me perdido, comecei a me  mexer um pouquinho. Queria acordá-lo.  Embora estivesse com pena, uma olhada  no relógio me fez ver que já eram quase onze horas da manhã. Fazia muito tempo que eu não acordava tão tarde. Lembrei-me da situação da minha avó, e logo a angústia total voltou a se apossar do meu corpo. Conferi  o  meu  celular, mas não havia nenhuma ligação. Ainda bem. Sinal de que tudo estava, na melhor das hipóteses, como no dia  anterior. 

Mesmo assim, resolvi ligar para a  minha tia, mãe da Lilian. A ligação acabou fazendo o Calvin despertar. Fiquei observando sua cara de sono – e o sorriso leve apontado para mim enquanto recebia as notícias da manhã. Segundo  a minha tia, o estado de saúde da vovó  era relativamente  estável.  Não havia tido melhoras ou pioras, ainda respirava com os aparelhos e permanecia na UTI, onde nenhum familiar  poderia  visitá-la. Prometi que passaria no  hospital mais tarde, independentemente  de qualquer coisa. Quando desliguei o  celular,  ainda  deitado,  sorri  de  volta  para  o  Calvin.  Ele bocejou, espreguiçando seu corpo grande. Depois, ergueu uma mão para tocar os meus cabelos.

– Bom dia, vizinho. Como estamos?

– Bom dia, vizinho... Estamos bem. Quero dizer, nada novo.

– Isso pode ser bom – sussurrou, ainda me olhando intensamente. Aqueles olhos...

Sério, havia alguma coisa naquele olhar  que não estava me deixando ser o mesmo Jimin de sempre. 

– Vamos torcer para que este dia seja melhor. – Ficou em silêncio.

– Ah, lembrei-me de mais uma da Clarice:
“ainda bem que sempre existe outro  dia. E outros sonhos. E outros risos. E outras pessoas. E outras coisas...”

Meus olhos se encheram de lágrimas.

– Parece que ela sempre tem algo a  dizer... A respeito de tudo.- comentei,  com  a  voz bastante embargada.

– Verdade. Deve ser bom saber o que falar quando a única coisa bem-vinda é o silêncio.

– Através dela, você acaba fazendo isso, Calvin. Ele sorriu de orelha a orelha.

– Acho que, depois de tantos anos, achei uma utilidade para a minha mania de decorar frases.

Fiquei calado, pois não soube o que dizer. O sentimento de gratidão se uniu a todos os outros. Acredito que era aquele misto de emoções que estava fazendo com que eu me sentisse tão diferente. A minha vida nunca esteve tão longe da estabilidade anterior. Calvin começou a rir depois de algum tempo em silêncio.

 𝘖 𝘎𝘰𝘴𝘵𝘰𝘴𝘢𝘰 𝘋𝘰 105 ꧁☟︎︎𝕵𝖎𝖐𝖔𝖔𝖐꧂ Onde histórias criam vida. Descubra agora