𝑽𝒆𝒍𝒐́𝒓𝒊𝒐 𝒅𝒂 𝒗𝒐𝒗𝒐́ ☹︎

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Se antes me entendia pouco, agora não entendo nada; e a única coisa que me anima é a certeza de que sei mais sobre mim.

Depois  de  uma  noite  horrorosa  (qual  o  melhor  adjetivo  para  definir  uma noite  em  claro,  com lágrimas, dor de cabeça e uma solidão fora do comum?), fui ao trabalho apenas para conseguir uma folga. O meu chefe não ficou muito satisfeito com a notícia, mas acabou me dando dois dias. Comecei a temer pelo meu trabalho, coisa que jamais aconteceu. Só faltava uma demissão para a tragédia ser total. O fato é que passei o dia inteiro para lá e para cá com o meu pai e o meu tio. Não queria fazer parte  do  lado  da  família  que  só  lamenta,  precisava  ser  útil.  Era  o  mínimo que  eu  podia  fazer  pela minha avó: ajudar a deixar o seu velório nos trinques.

Confesso  que  foi  muito  exaustivo.  Os  preços  exorbitantes  que  as  funerárias cobram  por  cada serviço ultrapassam o limite do ridículo. Parece-me que eles querem se aproveitar da sua dor para lhe arrancar cada centavo. No  fim  do  dia,  à  noitinha,  conseguimos  com  muito  custo  deixar  tudo organizado.  O  corpo  da vovó seria velado no dia seguinte às oito da manhã, e o enterro seria às nove. Alguns familiares que moravam  mais  distante  começaram  a  chegar  à  cidade.  Pensei  em  ir  dormir na  casa  dos  meus  pais (qualquer lugar seria melhor do que sozinho no meu quarto, inconsolado... Sim, aquela noite me fez mesmo mudar de ideia), mas eles receberam alguns parentes. Mamãe  estava  inconformada.  Obviamente,  culpava-se  pela  morte  da  vovó, e  mesmo  que  todo mundo  estivesse  a  apoiando,  ainda  assim  não  parava  de  se  lamentar.  Não  a julguei  por  estar  tão desesperada. Eu mesmo via o desespero da culpa se apossar do meu corpo, mas me controlava além do normal, de modo que ninguém sequer imaginou o que se passava pela minha cabeça.

Voltei para casa com o velho ar de derrota. Estava exausto, porém sabia que não seria capaz de dormir. Tomei um banho, comi uma maçã (praticamente meu único alimento do dia) e me joguei no tapete consolador por algumas horas. Fiquei olhando para o teto, chorando baixo e assistindo à minha dor. Tinha vencido aquele dia com muita garra.

Nem sabia que podia ser tão maduro com relação a algo tão triste quanto a morte. Pensei que desabaria... Mas ainda estava de pé. Às vezes é preciso que algo muito ruim aconteça para que a gente perceba até que ponto podemos ser fortes. O meu mundo continuaria girando. Na noite passada, podia jurar que o tempo pararia por causa da minha dor, mas a verdade é que tudo permanece. Imaginei que, se fosse eu que tivesse morrido, ia querer que a minha família seguisse em frente, sem lamentações. Sempre procurei não magoar ou decepcionar os meus pais, por isso certamente não quereria  que  chorassem  por  mim. 

Vovó  era  o  tipo  de  pessoa  divertida  que sempre  compartilhava coisas boas, diferentemente de alguns velhos carrancudos que vejo por aí. Ela gostava de viver, de ser feliz. Jamais ia querer a tristeza dos outros, sobretudo de sua própria família. Sendo assim, ficar triste é o mesmo que decepcioná-la. E eu não podia fazer aquilo com ela. Já bastava a minha ausência, o meu descuido. Não tê-la visitado, mesmo sabendo que estava doente, foi um erro grotesco.
Entretanto... Não posso voltar no tempo. Pensei na Clarice Lispector. Não me faça perguntas sobre isso, apenas entenda que não parei de pensar  nela. Acabei  ligando  o  meu  computador  e  fazendo  algumas pesquisas.  Havia  muitas  frases  e citações. Tipo, muitas mesmo. A mulher era uma verdadeira filha de uma mãe. Cada frase que eu lia, percebia  que  estava  apaixonado  por  aquelas  palavras.  E,  depois  de  um tempo,  percebi  que  ela  as agrupava de uma maneira singular, que supus fazer parte do seu estilo.

Reli as inúmeras frases que o Calvin já tinha me dito. Foi demais reconhecê-lo naquelas linhas. Tentei não  me  sentir  nostálgico.  Tentei  até  mesmo  sentir  raiva  do  sujeito. Não  consegui.  Eu  não guardo  rancor,  não  adianta.  Faz  parte  de mim. Com ele ou  com  qualquer um,  sou  assim.  Sempre justifico  os  erros  dos  outros  (mesmo  que  eles  mesmos  não  consigam  se justificar)  e  encontro  um modo de perdoá-los. Eu sei, preciso deixar de ser besta. Uma ideia esquisita passou pela minha cabeça. Não faço ideia de como foi que ela surgiu, só sei que, com o monitor ligado e as frases da Clarice saltando em meus olhos, olhei para o lado, na direção da  parede  de  gesso  branca,  e por um  instante  me  vi  escrevendo  nela. 

 𝘖 𝘎𝘰𝘴𝘵𝘰𝘴𝘢𝘰 𝘋𝘰 105 ꧁☟︎︎𝕵𝖎𝖐𝖔𝖔𝖐꧂ Onde histórias criam vida. Descubra agora