Identidade

958 100 119
                                    

De todos os lugares do mundo e de todas as famílias possíveis, Ash teve que se encontrar justamente com uma pessoa que o conhecia, uma que ele nem ao menos recordava.

Seria possível ao menos fugir do seu passado? Até então, o americano sentia que estava vivendo em um doce sonho shakesperiano no Japão. Agora, as cenas sombrias na sua memória eram encaradas apenas como parte de um filme de mau gosto. Fechadas e isoladas para que um dia fossem completamente esquecidas - mas no fundo ele sabia que não poderia continuar com isto. Porque a vida sempre provaria que não podemos fugir de nós mesmos.

Ao entrar na residência Okumura, Ash ficou feliz de não ver ninguém no seu caminho. Do contrário, além de ter que dialogar com quem quer que estivesse ali, teria que explicar as sacolas de presente. Evitando as outras peças da casa, ele subiu as escadas e foi direto ao quarto que compartilhava com Eiji, ignorando totalmente os barulhos que vinham do quarto de Miya¹. Como esperado, o fotógrafo estava lá.

– Como foi no shopping? Você demorou! – O mais velho sorriu.

O americano estremeceu. Ver Eiji naquele momento havia desencadeado algo inexplicável dentro dele. Mas inexplicável até onde? No dia anterior, ele havia dito que estava cansado de ser sempre forte, que estava cansado de apenas sobreviver e não viver. Ele queria ser frágil sem que isso lhe custasse algo. Mais uma vez, Ash desejava ser cuidado e acalentado por quem gostava.

Deixando escapar suas sacolas, foi até a cama de Eiji e o abraçou.

– Opa! – Falou o mais velho, deixando o livro que estava lendo cair. – Calma, calma! Ash, você está bem? Quer me contar o que aconteceu?

Não era como se o americano não quisesse contar, ele simplesmente não podia. Como explicar para seu amigo, o que havia acontecido? Como explicar a natureza de Nagai? Quando o empresário começou seu monólogo dentro do carro, Ash achou que o que ele quis dizer com: "jamais poderia amar, porque a sociedade julgaria meus sentimentos" se tratava de uma confissão quanto a sua orientação sexual, mas não era isso - assim o fosse.

Nagai era pedófilo.

Quando Ash estava sobre a tutela integral de Dino, ele tinha menos de 14 anos. Época em que ainda frequentava locais secretos e se prostituía. Foi nesse tempo que provavelmente o empresário havia lhe visto circulando em um dos bordéis de luxo.

– Não posso. – Ele disse.

– Tudo bem, tudo bem. – Eiji deu palmadinhas na cabeça do mais novo. – Quando estiver melhor para contar eu irei te ouvir. Sem pressa.

Em outra situação, Ash sabia que seu amigo confiaria na sua palavra, mas este seria o caso? Por mais que o fotógrafo não se desse bem com o tio, acreditaria que Nagai era pedófilo? E mesmo que acreditasse, como ficaria depois lidando com essa informação? De novo, Ash não queria trazer mais desgraça a vida da pessoa que amava, assim como fez naquele ano.

– Não pense muito. – Eiji afastou o mais novo do colo. – De alguma forma, o que você está guardando para si deve estar te sufocando. E já que não quer ou não pode me contar, não pense muito nisso. Quando chegar o momento, você vai saber o que dizer. Está bem?

– Eiji... – Exclamou. – Você acha que eu posso ser lembrado apenas como um assassino e prostituto? – Perguntou repentinamente.

– Isso tem a ver com o que você está guardando para si? – Retornou o fotógrafo.

Ash desviou seu olhar do mais velho. – Mesmo que seja, isso é algo que venho pensando. Se como dizem, o que faz o seu "eu" são suas memórias, o que constituiria meu "eu" seriam apenas partes ruins?

One more time, One more changeOnde histórias criam vida. Descubra agora