Depois de presenciar aquela perturbadora irrupção, McCartney procurou ajudar Lennon a se recompor da situação na qual se encontrava. Aqueles olhos âmbar que sempre o olhavam com vanglória, agora estavam perdidos imersos no nada, exibindo um medo infantil.
Com cuidado o aprendiz ergueu o avatar de seu mestre do chão, fazendo-o sentar de pernas cruzadas. Logo em seguida fez o mesmo, ficando de frente para ele. Arrumou pacientemente suas vestes bagunçadas e enxugou seu rosto com os polegares numa delicadeza invejável.
Passou um tempo encarando aquele semblante desvanecido. Esperou que seus olhares se encontrassem para poder iniciar alguma conversa, mas foi em vão. O dono dos cabelos cor de cobre pareceu absorto em suas memórias traumáticas. Pôde imaginar o quão terríveis poderiam ser, pois durante toda sua existência também conviveu com as próprias.
-Ainda somos completos desconhecidos. –Disse o aprendiz com uma paz inabalável. –Nós trocamos apenas nossos nomes e algumas palavras. –Observou o cabisbaixo mestre por mais alguns instantes. –Pouco ou nada sabemos de nossas histórias e experiências... Talvez possamos conversar sobre elas.
-Não... –Interrompeu triste. –Eu que ainda sou um desconhecido. –Ergueu a cabeça finalmente mirando os olhos coloridos do moreno. –Conheço toda a sua história, vi todas as suas memórias e cada passo que você deu até eu te encontrar. A sua vida foi um completo pesadelo, rapaz... –A tristeza e o compadecimento banharam os olhos de Lennon, fazendo-o espairecer por um momento de todos os seus traumas. –Como você conseguiu?
-Não creio que eu tenha conseguido, senhor. –O olhar do avatar passeou pelo rosto do aprendiz, não acreditando naquelas palavras.
-Você está bem melhor com seus demônios do que eu.
-Parecer é bem diferente de ser; tendemos a camuflar nossa verdade. Meu inferno é particular, assim como o seu deve ser: com alguns tantos efeitos colaterais. Além disso, não estamos em um campeonato de tristezas... Apenas nós sabemos o peso das nossas dores. O que é ruim para mim, pode não ser para você e vice-versa.
Lennon não conseguiu retrucar. Voltou a fitar o chão, pensativo. Percebia-se que estava entre escolher continuar padecendo em suas próprias trevas e canalizar todos os seus tormentos para algo menos destrutivo. Em sua posição era de se supor que sentisse vergonha de abrir a boca para pedir ajuda.
-Estaria mesmo disposto a me escutar? –O tom esperançoso estava escondido por trás da pergunta.
-Disposto a matar até o seu próprio pai se fosse preciso.
Em outro contexto aquelas palavras pareceriam chocantes, mas a reação do avatar foi completamente oposta: um sorriso pequeno, sem jeito, foi a permissão que concedeu a ele para entrar de cabeça no inferno que até aquele momento não conhecia. As boas vindas ao novo martírio.
-Sabe, eu tive a melhor infância que uma criança poderia ter. –Começou saudoso. –Não havia algo que eu estivesse fora do meu alcance. Fui cuidado pelos meus avós com um carinho extra; em outras palavras, altamente bajulado, tendo de tudo do bom e do melhor. Mal me lembrava dos meus pais que só viviam viajando mundo a fora a fim de conseguir seus lucros para usufruírem das nossas vidas de rei. Raramente eu os via; eram nos fins de semana a cada quinze dias, se não me engano... Mas eu os amava com toda a certeza, nunca tive dúvidas. E acreditava que eles se amavam também. Isso até eu ser testemunha do assassinato da minha mãe. –Os olhos do mestre automaticamente marejaram com a lembrança. Sua voz embargou mas ainda pôde continuar o relato. –Lembro-me bem quando meu pai saiu pelos corredores da casa em busca de uma pistola enquanto xingava a minha mãe aos berros; ela estava no chão do quarto deles chorando, e eu fui ao encontro dela. Foi tudo tão terrível... Ela se rastejava a fim de se reerguer e fugir dali. –Uma pausa foi dada, Lennon engoliu o pranto sob grande esforço. –Eles discutiam sobre uma traição! –Sacudiu a cabeça incrédulo, sorrindo entre um plangor contido. –Uma coisa que poderia ser resolvida com a merda de um divórcio... É difícil confessar que o que ficou gravado em mim foi o momento em que meu pai voltou e atirou na cabeça dela, na minha frente. Eu gritei muito num primeiro momento, depois fiquei estático olhando pra ela com aquele buraco enorme na testa que atravessava de um lado a outro da cabeça, e que ainda queimava, exalando o cheiro mórbido da carne. Mesmo morta meu pai olhava pra ela com ódio; ficou parado lá, respirando fundo um monte de vezes, como se esperasse a certeza de que ela não mais se levantaria dali.
VOCÊ ESTÁ LENDO
FIXAÇÃO - Mclennon
RomanceJohn Lennon estava em busca do seu próximo aprendiz pelas ruas de Zerbiek. Ele seria um exímio assassino e conhecedor de todas as artes, ignorando limites e sensibilidades, ultrapassando o extremo de seus antecessores. Paul McCartney foi escolhido p...