Capítulo XXI

1.8K 149 197
                                    






"Uma nova perspectiva se faz concreta a cada século em que você não está aqui. O ciclo é cansativo e lento, tratando de congelar parte da empatia que chegou a habitar em mim com mais forças do que antes. A cada despedida sem um adeus dito, e as diferentes maneiras em que minhas mãos chegaram a lhe tocar. Em muitas delas houve o carinho díspar ao meu habitual costume nessa arte do "sentir" ao tato. E no fim temporário, a matei sem qualquer controle do que sou."

Existem diferentes tipos de gaiolas. Algumas são feitas por humanos que apreciam privar a liberdade de uma ave, aprisionando-a em algo bonito e com grades. Outras são abertas, mas os prisioneiros que habitam, possuem seus motivos para se aprisionarem ali, sem meios de sair, quem sabe o medo ou a incapacidade de se permitir tentar algo novo. Tem aquelas onde, não é física seus limites, mas está em seu coração, embrenhado em suas decisões, e dividindo sua essência do que é e o que deveria ser. Muitas possuem um cenário, vozes e estão dentro de sua própria cabeça. É a sua própria cabeça. O chamado "prisões de pensamentos" ou "pensamentos que geram prisões". Seja o que for, de modos diferentes, eu estou em todas elas, preso, e aprisionando ao mesmo tempo. Seja sendo o meu próprio algoz, como ela costuma dizer e pensar, ou o de outras pessoas.

A muitos séculos não sei o que é dormir, em tese vejo a forma como humanos praticam essa arte, mas não entendo se de fato descansam ao fechar os olhos, ou se caem em um limbo cansativo, em um extenso trabalho na busca pelo tranquilidade e plenitude . O meu exemplo mais próximo parece sofrer mais, quando está desacordada, não parece ser bom para ela, mas algo na maneira como tem facilidade em adormecer, me faz sentir um sentimento estranho, creio que seu nome seja "inveja", algo tolo, simplório e patético, afinal são sentimentos humanos.

Entretanto, ainda consigo fechar os olhos, é algo comum para pessoas que respiram, e para mim, tornou-se uma espécie de mania. Eu fecho os olhos quando quero entrar naquela gaiola. Depois de tanto tempo, aprendi a ter as chaves das minhas prisões, e a me acorrentar dentro delas. A chuva de certo modo me mantém lúcido, ainda que eu não perca a lucidez de modo algum. Mas há algo que lava a minha impureza, ainda que eu não me importe com esse termo.

Dentro da minha gaiola, a chuva e o trovão representam uma noite inesquecível e catastrófica. Os gritos são uma espécie de arte perdida, me prendo dentro deles, e revejo várias e várias vezes as atrocidades cometidas por mim mesmo. Não me lembro com clareza o século, mas houve um tempo em que os humanos buscavam um serial killer. As vítimas apareciam sem suas cabeças, jogadas em qualquer lugar, e às vezes sem o coração. Aqueles tempos foram o prelúdio do meu declínio moral, não me arrependendo, honestamente não faz qualquer diferença na minha consciência. Faz parte do que eu sou, e do que eles são. Caça e caçador. Por isso a gaiola, não para me torturar com os sons, o sangue abundante e a minha falta de expressão perante as cenas de morte e corpos se amontoando. O motivo real dessa prisão, é entender se algum dia eu irei, verdadeiramente, me arrepender do que fiz.

Quase mil anos de imortalidade, e nenhum traço de arrependimento veio a tomar a minha consciência. O lugar e os gritos são indiferentes, quando se tratam de pessoas da qual não me importo nenhum pouco. Essa gaiola, eu ainda não sei qual sua função real, a que funciona realmente, e não a teoria do que deveria funcionar, mas é o meu lugar especial. Diria assim, se soubesse dizer quais os fatores reais que tornam um lugar, propriamente dito como "especial". A outra gaiola que não me atrevo a lidar, está congelada desde a minha transformação. Não bate, não bombeia, não reage, mas mesmo assim, parece ter ganhado vida própria.

Ao meu ver, o meu coração já não pertence mais a mim, outro alguém o tomou e faz sua função em outro corpo, deixando comigo apenas a casca podre e representativa do que fui um dia. Essa pessoa, que o tomou à força, invade sem ser convidada, e habita cada partícula do meu ser, denominada a única que possui as chaves de todas as minhas prisões, além de mim mesmo, e agora está em minha frente, mais uma vez, invadindo o meu lugar especial. Não sei bem se ela compreende como consegue fazer isso, está sempre assustada quando vem aqui, escuta os gritos e corre em direção contrária a eles, chama por um nome, se assusta e fala sozinha ao vagar pelas ruas escuras, entre os bancos quebrados e postes sem luz. A única luz, fica mais à frente, uma maneira de semear o pouco de empatia que habita em mim, a única luz viva no momento, e a última. Ela pisca, e quando faz isso, eu sei que significa que Sakura corre riscos de vida. É o meu alarme especial.

É você? Onde histórias criam vida. Descubra agora