Prelúdio ao Segundo Ato

59 7 198
                                    

"Grandes descobertas são sempre precedidas por pequenos passos na direção certa. O pequeno precede o grande. É menor em magnitude; ainda assim, indispensável."

- Postulados, de Nbami onoi-Wakon


Annk de Badd, Erdávia ocidental.

Quatro anos antes.

Era um tanto desconcertante o modo como esse boi orvoff estava há cinco minutos olhando para Tobbi. Observando, mastigando, bufando ar quente pelas narinas. Voltando a mastigar o feno. Ou talvez não estivesse olhando para ele. Talvez aquelas duas órbitas, grandes como o punho de sua mão fechada e iluminadas pela claridade lunar, estivessem apenas fixas por conveniência.

Talvez o boi estivesse apenas curioso pelo visitante incomum em seu estábulo.

Tobbi inclinou a cabeça para trás, suspirando. Seu corpo afundou ainda mais no fardo de palha em que estava deitado. Fazia frio. As mãos gélidas de Kallyeva estavam cravadas no ar estagnado do estábulo, que tinha cheiro de palha seca e fezes de orvoff, na luz da lua que entrava pelas aberturas na parede, e no lampião de gordura que ardia no alto, e que não trazia calor algum. Fazia frio, e ainda assim não era nada em comparação ao lado de fora. Onde, inadvertidamente, ocorria uma leve nevasca.

Dali a pouco, seus ouvidos captaram o ruído de passos sobre a neve. Nem sequer se moveu. Fosse um dos trabalhadores do seu pai que vinham renovar a palha dos estábulos, fosse uma das mulheres que trazia mais gordura para o lampião e comida para os bois, nada era motivo para ficar alarmado. Apenas continuaria deitado...

A porta do estábulo se abriu com um rangido prolongado. Os passos ficaram mais próximos. Em nenhum momento cessou o ruído do animal mastigando. Claramente, não era nenhum estranho.

- Tobbi? - perguntou uma voz conhecida.

Tobbi, ainda deitado, inclinou ligeiramente a cabeça na direção de Werlk. O outro rapaz, de cabelo marrom-avermelhado e uma pequena trança na sliva na nuca, respondeu com um meneio de sobrancelhas.

- O que você está fazendo aí deitado?

- Nada demais. Estava apenas pensando que o boi está me olhando demais - disse Tobbi num tom relaxado, e bocejou.

- Claro que está! Ele está pensando "por que merdas esse humano não me deixa dormir?". Consigo ver isso nos pobres olhos dele.

- Isso não é verdade - replicou o rapaz. - Ele já estava acordado quando cheguei aqui.

Viu que Werlk lhe extendia uma mão. Aceitou a contragosto, ficando de pé. Arrumou a camisa de lã e o gibão, que haviam ficado numa posição estranha quando deitara.

- Dobka está nos esperando - disse Werlk, num tom neutro. - Com as garotas.

Tobbi torceu o nariz, receoso.

- O que foi? Agora vai dizer que não quer ir mais? Sabe que elas só aceitaram porque dissemos que você estaria lá, não sabe?

- Ah... mas essa nevasca. Não sei...

Werlk fez uma expressão irônica. - E desde quando uma nevezinha já nos impediu de encontrar com algumas garotas?

- Até hoje, nunca.

Mas não era sobre isso. Não era sobre nada disso. Droga, Werlk e Dobka eram seus amigos, mas por que nenhum deles conseguia entender o que ele queria dizer? Não, não eram apenas eles. Seus irmãos e irmãs, as pessoas do annk, seus pais, o velho sábio-bruxo... ninguém parecia compreender o que ele queria dizer ao afirmar que precisava dar um tempo de tudo. Que estava sufocado pela vida no annk, e pelo que seria o futuro.

KALKIALA - A gema da vidaOnde histórias criam vida. Descubra agora