Capítulo 4 | Correnteza de Hud - Parte 2

88 17 283
                                    

Não haviam meios do jovem saber, à época, sobre tudo aquilo que acontecia diante dos seus olhos. Sobre as correntes de Hud, correntes marítimas sazonais que, nas três semanas do mês da Névoa, tornavam-se o principal caminho dos hud'aquils para a Ilha Santuário, onde se reproduziriam. Ou sobre os navios-mortalha, esses fenômenos de gente que se aproveitava do potencial perigo daquelas correntes ao sul do Mar Central para encontrar o seu fim no mar. Não... como alguém que apenas começava adentrar esse território que permanecera isolado por dois milênios antes dos primeiros navegadores o descobrirem, haviam ainda muitos mistérios a ser resolvidos.

O convés fedia, constatara Tobbi com certo estupor. Apertou o nariz com os dedos. Não era o simples e conhecido fedor de fezes, ou urina, ou qualquer putrefação que o homem já conhecia desde os seus primórdios. Era um cheiro pungente, incisivo, e que parecia despertar nele um temor quase irracional.

O vento balançava o navio com uma força incomum.

Tobbi correu para se assomar à balaustrada nos flancos do galeão. Olhou por cima dela, para o mar. Gigantescas silhuetas escuras estavam passando pelo navio, acompanhando a sua trajetória. E, à passagem delas, as águas pareciam contrariadas e revoltas.

O capitão deve saber algo a respeito disso, viu-se pensando. Não o vira em momento algum. Aliás, não vira ninguém da tripulação, que não o marinheiro pandoreano de antes. Mas, apesar de não ter visto o capitão, era natural supor que aquele navio tinha um. Que navio não teria?

Tobbi correu para a cabine, que ocupava a parte traseira da embarcação. A porta estava aberta. Empurrou-a com o cotovelo e entrou. O recinto, um estreito corredor, estava morbidamente silencioso.

Moldando-se à pouca luz do corredor estreito, avançou com cautela. Em dado momento, ouviu que alguém assobiava uma cantiga que não conhecia. O ruído estava parcialmente abafado pelas paredes.

– O capitão está aí? – perguntou.

Não houve resposta.

– Preciso falar com o capitão!

A voz que assobiava não respondeu nada. Apesar disso, Tobbi adentrou ainda mais fundo na cabine do galeão, seguindo em direção à origem desse barulho. Não muito depois, o corredor desembocava num diminuto recinto, empesteado pelo peso do silêncio relativo.

Tobbi parou. Aquela devia ser a sala de comando, ou algo muito próxima dela. Haviam estantes pequenas coladas às paredes, adegas vazias e uma mesa imóvel no centro, onde um vidro de tinta perdera o equilíbrio e caíra. Mas, bem mais impactante do que isso, foi a visão de duas pessoas no chão, ao pé da mesa. Um homem pandoreano mais velho, de barba branca e aparada, que não vira mas provavelmente era o capitão, e o mesmo marinheiro de antes. Um deles assobiava; o outro estava deitado, inerte.

– O que aconteceu aqui? – perguntou o jovem, ajoelhando-se ao lado do homem de barba branca. Bateu de leve no rosto dele. Não houve reação. Devia estar morto.

Viu que o marinheiro parou de assobiar. E também sorriu, balançando a garrafa de rum que a mão dele não soltava.

– O capitão não quis... esperar. Sabe? Ele era um homem metódico e sério. Mas, no fim... deve ser difícil lidar com o nervosismo, entende?

– Ele se matou? Por quê?

– Não entende, rapaz? – O marinheiro assentiu lentamente. Os olhos dele estavam voltados para a própria mão. – Ele sabia que ia morrer... eu também sei, mas ele sabia com mais certeza. Entende? Nós não pagamos pela viagem, então podemos escolher mais... mais que vocês. Ele quis jogar um jogo com a pasta de ihani. Tínhamos um punhado dela. No fim, ele perdeu o jogo e morreu...

KALKIALA - A gema da vidaOnde histórias criam vida. Descubra agora