Ao levantar mais uma vez, Vyeda sentiu um mal-estar ainda maior do que antes. Parecia como se estivesse de pé sobre as ondas do oceano. Ossadas. Teria perdido tanto sangue assim? Ou talvez tivesse feito muito esforço para derrotar um mero soldado. De qualquer forma, já terminara o que viera fazer, por enquanto. Ni Kao que reclamasse, mas voltariam à cabine do navio naquela noite.
O fogo enfraquecido da lareira, intermitente, pouco ou nada clareava da cozinha à sua volta. Alguns passos à frente, o caldo que Telmo jogara em sua direção já escorrera por entre as tábuas do piso; dele, restava apenas o aroma de carne.
Hakk surgiu de repente, quando Vyeda abriu a porta da cozinha. A expressão que viu nele a fez perceber que ainda segurava a máscara nos dedos. Esquecera de colocá-la.
– Está tudo bem, Vyeda? – perguntou ele, preocupado. – O que é esse ferimento?
– Sim – disse ela, sabendo que isso só responderia à primeira pergunta. Vyeda. Aquele homem era o único a quem tolerava que a chamasse pelo nome. Não chefe, não Kasir, não Makot; mas Vyeda. Porque ele fora por tanto tempo o braço-direito do seu pai, o antigo chefe, dava essa liberdade ao erdaviano. Ainda que só em poucas ocasiões.
– Está ferida!
– Estou – respondeu, como se essa fosse a coisa mais óbvia do mundo. E era.
No salão iluminado da entrada da taverna, encontrou Ni Kao, que sorriu para ela ao vê-la. Ao invés de responder-lhe, cobriu o rosto com a máscara. Pouco depois, viu Sassin entrar pela porta da frente, trazendo duas mulheres consigo. Sob os braços, no ar, como sacos de batata. Por algum motivo, nenhum dos outros clientes estava mais ali. Nem mesmo o velho taverneiro. Deviam ter fugido, pensou.
– Chefe – disse o naedi setentrional, sorrindo largamente –, essa é a garota que atirou a pedra, antes – Apontou para uma delas, uma garota morena, mais franzina. Vyeda assentiu. – Ela estava tentando resgatar a outra. A garçonete.
A assassina inclinou a cabeça para o lado, pensativa. Sabia no que aqueles três estavam pensando, ainda que nenhum deles tivesse ainda feito a fatídica pergunta. O que fazer? Sassin e Hakk talvez não, mas o resto dos seus homens provavelmente iria querer se divertir com elas. Ni Kao, por outro lado, tinha seus interesses voltados a uma suposta informação que uma delas devia ter.
De repente, enquanto refletia nisso tudo, Vyeda percebeu algo que era mais importante.
– Hakk – disse, de repente –, acabo de lembrar... Kalkiala não soa familiar a você? É da sua terra, deve saber.
– Agora que penso, acho que sim – O erdaviano coçou a barba, franzindo as sobrancelhas. – Sim. Não é um sobrenome desconhecido. Como não é o sobrenome do rei, deve ser o de algum chefe-tribal, pelo menos.
– Interessante. Um chefe-tribal...
– Temos a mocinha – disse Ni Kao, de repente. Seu rosto, pequeno e enrugado, revelou uma centelha de ansiedade ao dizer: – Nocauteei o dono da taverna sem querer, quando ficou muito agitado. Mas todo o restante daquelas pessoas fugiu. Devem ter ido chamar os guardas. Precisamos levá-la para o barco, Kasir.
Vyeda fez uma breve pausa, antes de dizer:
– Não. Vamos deixá-la. As duas.
– Deixá-las, chefe? – Sassin e Ni Kao pareceram igualmente surpresos. Hakk não disse nada.
– Sim.
– Mas...
Se o velho agiota tinha algum argumento, parou de dizê-lo quando Vyeda o encarou de soslaio. Sassin, com o mesmo sorriso idiota, largou as duas no chão.
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KALKIALA - A gema da vida
FantasyQuando os meteoros caem, ninguém nunca sabe o que haverá neles. Ao descobrir que um meteoro caiu nas proximidades da sua lavoura, um camponês decide que deve agir rápido para livrar-se dele. Noutra parte do arquipélago, um jovem tem o seu mais recen...