"A loucura pode resultar como um efeito colateral da utilização do Ponto da Fragmentação. Seja no alvo, seja no usuário, caso este for o próprio alvo. Mas estamos falando aqui da Fragmentação Superior, e não da Inferior – aquela influi sobre elementos mais sutis; esta, meramente sobre o observável."
- Da Arte Sanguínea e sua Doutrina, autor desconhecido
A jangada de Tobbi alcançou a porta ocidental do arquipélago na tarde de um Sexto de Crescente. Crescente, Minguado... essas divisões naedi do tempo nunca haviam feito muito sentido para ele, como erdaviano que era. Ainda assim, agora faziam bem menos sentido.
Sentido...
Não sabia se era algum efeito dessa travessia, que quase se convertera num navio-mortalha acidental, mas tinha a impressão de ter perdido uma parte de si no alto-mar. Memórias, pensamentos, propósitos; algo definitivamente se perdera. Levado pelas ondas para alguma terra distante e erma. Era quase como se tivesse estado bem próximo de perder a sua essência, o "Fulgor" de que tanto falava o sábio-bruxo, aquilo que o permitia ser o que era. Quase, mas perto o suficiente para lembrar disso e sentir medo. Um medo profundo, irracional, como um toque glacial nas suas entranhas.
Mas estava realmente fora de perigo? Podia afirmar, com certeza, que chegara a algum lugar, e não estava apenas imaginando?
– Eu... não sei. É difícil dizer... – Olhou, de dentro da sua jangada, para o lugar que surgira diante dos seus olhos. Para tudo aquilo que devia ter lhe parecido, em outras condições, um raio de esperança. – Difícil dizer. Isso pode ser... qualquer lugar. Sim, é verdade. Ou pode não existir...
Contemplou a paisagem com olhos alucinados. As ondas lambiam gentilmente uma estreita faixa de areia, que poucos passos à frente erguia-se para dar forma a um declive rochoso. Rochas escurecidas de aparência molhada, onde, entre elas, espreitavam caranguejos que pareciam estar em chamas. Um portal, pensou. Aqueles eram os guardiões que protegiam a entrada da floresta, que começava logo acima do rochedo. Eram um desafio que deveria superar.
Tobbi caiu, mais do que desceu, pela lateral da jangada. A água fria do mar espirrou no seu corpo, fazendo-o se retrair de imediato. Mar. Aquele era o mar. Não gostava do mar.
Trotou como pôde para fora da água. Mas não parou na areia. Engatinhou rochedo acima, fixando-se nas rochas de aparência mais firme, ignorando as rápidas lancetadas de dor que sentia ao fazer isso. Os caranguejos de lava deram-lhe passagem, como súditos abrindo caminho ao seu rei. Quando suas mãos e pés encontraram o solo lodoso da entrada da floresta, a chuva, que cessara algumas horas antes, recomeçou.
– ... ele é só um filhote – repetiu a senhora, como se não a tivessem ouvido dizer o mesmo uma centena de vezes. – Um filhotinho. Indefeso e vulnerável! O que vou fazer, se ele se perder por... Ah!
Tama segurava o ombro dela. O suficiente para fazer aquela histeria toda acabar, percebeu Ked, apertando o nariz com os dedos. Não fazia a mínima ideia de como a sua irmã lidava tão bem com aquele cheiro insuportável.
– O filhote de bode vai ficar bem, dona senhora – disse a garota, com bom-humor. – Não devem ter macacos do sol tão perto daqui. Quer dizer, eles odeiam o cheiro de flor-mosca – Fez um gesto amplo, apontando para os arredores. Onde haviam dezenas de arbustos de flor-mosca.
– Eu também odeio – murmurou Ked, num tom desgostoso.
O rosto da mulher havia perdido toda a cor. Era evidente o porquê.
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KALKIALA - A gema da vida
FantasyQuando os meteoros caem, ninguém nunca sabe o que haverá neles. Ao descobrir que um meteoro caiu nas proximidades da sua lavoura, um camponês decide que deve agir rápido para livrar-se dele. Noutra parte do arquipélago, um jovem tem o seu mais recen...