Capítulo Dezessete

102 21 0
                                    

— Escuta esse.

Presto atenção na voz dele, não nas palavras que estavam em minhas mãos. Tinha lido apenas o começo, acho que todas tem meu nome.

— Aparentemente eu não sou bom em contar histórias. Contei a história de Alice no País das Maravilhas para Eric ontem à noite e agora ele está com medo da Rainha Vermelha sair do seu guarda-roupa e gritar: CORTEM A CABEÇA. Eu ri enquanto Sarah dizia que não era engraçado. Passei a maior parte da noite tentando lembrar como escrever, porque passei quase um ano sem fazer isso. Eric tomava muito meu tempo, mas eu amava brincar com ele e dizer que não havia nada com que se preocupar, eu estava aqui. Sempre. O pai de Sarah (não sei se já o mencionei aqui) acabou me perguntando sobre daqui a cinco anos, daqui a quinze. O futuro que queríamos para o nosso filho já que eu não conseguia um emprego por causa da minha insônia. Acordado muito tempo à noite e dormindo durante a maior parte do dia. Vou conseguir um emprego, vou dar a meu filho um futuro digno. Já disse a Eric. Estou aqui. Sempre.

Incrivelmente, eu não estava chorando ou com a mínima vontade de chorar. Eu estou quieto como uma parede, calmo até.

— O que diz no seu? — Perguntou colocando a cabeça na curva do meu pescoço ainda lendo.

Tomei um susto ao tentar ler e perceber que minha voz não saia. Engoli em seco aquela lixa presa na garganta e tentei pela segunda vez, encontrando uma voz rouca e distante que nada se parecia com a minha habitual.

— Eric me pediu para escrever uma carta de dia das mães com ele e o ajudei, quando Sarah chegou em casa ficou feliz com que escrevemos e decidimos fazer pipoca, chocolate e assistirmos a um filme. Mas eu não prestei atenção, estava pensando no porque eu estava com vontade de correr. Esqueci isso quando Eric pediu para assistirmos a um filme infantil, no qual eu ri bastante. Mas mesmo assim pensava na corrida.

— Seu pai era aleatório assim? — Otávio perguntou.

— É. Às vezes, no café da manhã ele me fazia repetir aquela frase de Alice no País das Maravilhas.

— Qual? Cortem as cabeças?

Rio.

— Não. No filme, Alice diz para si mesma: Antes do café da manhã, eu sempre penso em seis coisas impossíveis; Um, Existe uma poção que faz você encolher; Dois, um bolo que faz você crescer; Três, Animais sabem falar; Quatro, Gatos podem desaparecer; Cinco, O País das Maravilhas existe; Seis, e eu posso matar o Jaguadart.

— Nossa... — nos rimos antes que ele falasse — minha mãe só me fez decorar a tabuada do cinco.

Continuamos a ler as últimas folhas.

Mas paramos para prestar atenção na última, que estava nas mãos de Otávio.

Ele leu com uma voz firme, mas que enfraqueceu do meio para o final.

"Queria começar a entender o que quero da minha vida, há tantas coisas, mas poucas delas me deixam satisfeitos. Semana passada, recebi a notícia que um amigo distante tinha morrido, ele e eu nos conhecemos há anos e mal consigo me lembrar como viramos amigos. O nome dele, era Eric. Sim, o mesmo que o do meu filho. Há três dias percebi que Sarah anda distante comigo e não nos falamos muito, ela trabalha demais, está sempre cansada e tento não parecer desesperado pela atenção dela, mas a verdade é que estou. Fazíamos um tipo de dança sem pé nem cabeça; ela chegava e eu ia até ela, a beijava, ela sorria e saia dos meus braços então nós dois ficávamos com nosso filho, a dança se repetia dia após dia até que eu descobrisse e coisas simples fossem esquecidas, como o beijo e o abraço, até que cada um de nós ficássemos juntos apenas quando fossemos dormir (Uma sensação terrível de faca no peito e, na faca, bem no cabo, tinha a inicial do pecado). Mas isso também é uma mentira, meu estado de insônia tinha se agravado mesmo que quando ela comentava, eu dizia que tinha sido efeito do café. Meu coração palpitava sempre forte, sempre preocupado até que milhões de pensamentos chegassem até mim e começassem a dança, mas que não tinha hora certa para acabar. Ontem perguntei a Sarah o que ela achava de nos mudarmos, eu disse que poderia realmente pensar sério sobre escrever um livro já que não conseguia emprego. Mas ela não gostou. 'Como você pode escrever um livro se troca o dia pela noite, se não sai de casa?' Era tanta verdade que doía, mas havia uma razão para que eu não saísse de casa, eu não conseguia explicar, mas não era medo do sol, eu não sou vampiro. Mas também não era medo da noite já que eu a apreciava pela janela como agora enquanto escrevo isso. A verdade é que há dias algo me

— Porque parou? — Perguntei, chateado o bastante para tomar a folha das mãos dele.

— Porque não tem mais nada.

Verdade. Não era a falta de espaço no papel e aposto que também não era pela falta de tinta da caneta, ele só tinha parado, jogado para longe aposto. Incompleto, sem pistas, meu pai abandonou isso também. Em um momento de raiva que chegou em mim como um raio, acabei amassando a folha com toda a força que tinha e a joguei na porta, o baque não foi nada satisfatório, nada disso tinha sido.

Pisquei várias vezes para afastar as lágrimas.

Pisquei várias vezes enquanto desejava que as lágrimas sumissem, para que eu pudesse mostrar como um monte de palavras não tinha me abalado. Eu queria mostrar conseguir suportar, quando na realidade, estou fervendo de raiva ao mesmo tempo em que uma tempestade de lágrimas que se apoderar dos meus olhos. A quem eu estava querendo enganar, minha família — mãe, pai, padrasto, irmão, até meu avô às vezes — eram complicados, eram uma confusão. Não entendi porque decidi de repente que eu seria diferente.

A mão de Otávio cobriu minha bochecha esquerda. O calor se rapidamente e quis me desvencilhar do toque, eu só não consegui. Olhei para ele e me esforcei para consegui identificar as curvas do seu rosto, para ver o que seus olhos me revelavam ou o que expressão estava fazendo, mas as manchas na visão devido às lágrimas deixava minha visão decadente.

Aproximei meus lábios da sua mão e o beijei. Depois guiei meus lábios ao seu pulso, que está acelerado, depois a sua própria bochecha. Até que ele se afastou, com se eu fosse tóxico.

— Não faça isso — foi o que ele disse ao se afastar como se meus lábios estivessem queimado sua pele, a deixado insuportavelmente quente.

— Porquê?

Conseguir liberar isso foi difícil, tenho medo da resposta que vem a seguir. Os olhos dele estão brilhantes! Concentro-me na sua voz.

— Não quero que me beije assim — diz — de modo tão... Simples. Quero — Seus lábios tremem, mas ele sorri e continua com uma firmeza surpreendente — Quero beijar sua boca até cansar. Mas não simples, não como se fosse um segredo insuportável, algo sujo.

— Te entendo. Me desculpe.

Eu o tinha afastado.

Levantamos e encaramos as páginas jogadas no chão. Tínhamos lidos todas em uma questão de meia hora. Minhas pernas formigavam. Juntei as páginas e as coloquei no bolso de qualquer jeito.

— Está sentindo esse cheiro?

— Vovô deve estar fazendo torradas. Estou morrendo de fome.

— Compartilhamos isso, cara.

Saímos do quarto.

Quando chegamos à sala, percebi que Ian dormia.

— Ele dorme todo torto?

— É. Dorme.

Otávio encolheu os ombros. Meu tom não tinha sido amigável, mas ele não pode me culpar depois do que disse. Ele é tão complicado quanto eu, ora me diz uma coisa, ora fica sendo... amável. Acabo murmurando desculpas, mas fora tão baixo que duvido que ele tenha escutado, ou compreendido. Um gosto amargo apodera-se da minha boca ao perceber que estou agindo da mesma forma que Robson, estou sendo um babaca e logo depois lançando um pedido de desculpas que por mais sincero que fosse, não resolvia nada. Não cobria as palavras que eu já tinha lançado, só as diminuía. Vou até à cozinha e pego um prato, dou para ele e em alguns minutos eu, Otávio e vovô comíamos torradas e suco sentados à mesa, conversando sobre filmes, sobre a vizinhança e sobre mais coisas do que pude compreender. Me desliguei da conversa paralela quando as palavras do meu pai — algumas delas —fizeram sentido para mim.

A dança se repetia dia após dia até que eu descobrisse.

Até que cada um de nós ficássemos juntos apenas quando fossemos dormir.

Tinha a inicial do pecado.

Foi por isso que ele foi tão cordial quando me conheceu e, porque o filho estava tão quieto como se obrigado a assumir um papel em uma peça, se trapaceasse ou se desse um passo em falso, estava fora, acabaria com tudo.

Mamãe já conhecia Robson quando ainda estava casada com papai.


***


Otávio se foi pouco tempo após ter terminado de comer.

Vovô ficou me olhando por tempo o bastante para me incomodar.

— O que foi?

— Me responde uma coisa...

— Hum?

— Como vocês, aquele garoto e você, estavam estudando sem material nenhum? Por acaso escreveram com os dedos? — Vovô segurou uma risada. Mas por pouco tempo, ele começou a rir quando viu que eu não responderia nada.

Ian se mexeu no sofá, mas não acordou.

Eu estava sem palavras prontas para explicar, o que quer que ele quisesse saber, e parecia querer saber de tudo. A explicação estava distante da minha capacidade, encarei minhas mãos no colo e pensei que as palavras surgiriam assim que eu não o encarasse. O aperto no meu peito surgiu primeiro que a explicação, cobriu-o como uma mão rochosa e o apertou uma, duas, três vezes até que um som gutural saísse da minha garganta no lugar das sílabas que logo, seguindo o plano, formariam as palavras.

Eu comecei a chorar.

— Ei, ei, ei — a voz do homem ao meu lado era nervosa — rei Eric, calma, filho.

Sinto seu abraço, sinto sua voz tentando me acalmar. Sinto tudo isso e mesmo assim continuo a chorar, não sei se agora tenho a capacidade de parar. Minhas mãos ainda estão no colo, mas cerradas até doerem porque eu não entendia. Não entendo ainda. Como tudo pode ser tão complicado, tão distante e tão irritante? Porque não consigo — eu sabia que estava falando meus pensamentos em voz alta mesmo que a saliva acumulada e os suspiros, os arquejos e os soluços atrapalhassem —, não consigo entender porque não posso dizer a Otávio que gosto dele, que depois do que Júlia me falou eu tinha tirado a prova de que sim, eu gostava dele como gostava de ir ao cinema sozinho, como gostava de saber que ele ria e olhava para mim. Não consigo entender porque meu pai foi embora e não tentou conversar comigo, mesmo que só uma vez para que eu pudesse implorar para que não sumisse e o que minha mãe fez, o deixou ir? Ela nunca me conta, está aí outra coisa que não compreendo vovô, porque o senhor também não me conta? O que há de errado? Sei que há algo de errado aqui, comigo, com minha família... Então, porque não me contam?

Recebo batidinhas nas costas e nada mais.

Fico abraçado com meu avô.

— Você gosta dele.

Balancei a cabeça. Senti o pomo-de-adão do meu avô mexer-se e não soube dizer que palavras ele engoliu, o que iria dizer e preferiu não dizer. Foi uma preocupação de cinco segundos até eu perceber que ele não precisava dizer nada. O jeito como me abraçava, como se quisesse me proteger já dizia tudo.

Tive que tomar comprimidos para dor de cabeça e me deitei.

Não dormi, no entanto.

Acabei guardando as folhas no mesmo lugar.

O tempo passou arrastando-se, escutei quando meu avô deixou a louça no escorredor, escutei quando Ian acordou e mudou o canal da televisão. Escutei quando a porta foi aberta e minha mãe e Robson entraram. Foi então que me levantei e sem pensar fui até eles, a raiva ainda borbulhando mesmo que eu pensasse que estivesse sumido. Não sumira, não sumiria até que eu entendesse tudo.

Mas não fui capaz de falar quando chegou o momento, não por falta de coragem, eu tinha reunido doses de coragem que nunca saberei de onde vieram. Não foi o bastante quando vi que Robson estava com metade do rosto ensanguentado. As palavras sumiram quando Ian gritou em desespero e meu avô teve que segurar o outro ombro de Robson para que ele não tombasse para frente e desse de cara no chão. Minha mãe estava respirando com dificuldade.

Quando nossos olhares se encontraram, ela não sorriu, ela realmente não me viu.

Voltei para o quarto e me deitei enquanto eles cuidavam de Robson. Ouvi os gemidos dele enquanto falava algo com a língua pesada, estava bêbado sem sombra de dúvidas. Mamãe o mandava calar a boca, Ian chorava. No quarto em pleno escuro, me perguntei se a atitude do meu pai de fugir foi assim tão egoísta. 

Nos Vemos à Meia-noite (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora