Capítulo Quinze

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Minha mãe disse que Ian podia continuar dormindo. Ele podia faltar a escola hoje. Me arrumei o mais rápido que pude, desejando poder voltar no tempo e não ter perguntado a Otávio se ele poderia me esperar. Eu devia ter dito que faltaria, poderia ter inventado mil e uma desculpas, mas não. Disse para que ele me esperasse.

Quando ficamos ombro a ombro andando pela calçada deixamos que o silêncio falasse por nós, não havia nada que pudéssemos falar que acabaria com o constrangimento da situação, não posso fazer com que ele esqueça o que viu na minha casa assim como ele não pode fazer com que eu esqueça suas palavras de minutos atrás, eram situações dolorosas que nos levavam para uma estrada de dois caminhos; a do silêncio, que permitia que nos dois levássemos adiante sem piorar as coisas porque afinal, isso podia acontecer. E a estrada do diálogo, que sinceramente, muitas pessoas não a escolhem por medo. Estou com medo por isso sigo pela estrada mais fácil.

Sempre pela mais fácil.

Perguntei por que ele não levava mais Felipe à escola. Ele respondeu que é porque Pedro se dispôs a este trabalho por agora que podia dirigir. Ano passado, contou-me, Pedro não tinha um carro por isso sempre saia cedo de casa para ir à escola; ele passava a maior parte da manhã atrás da escola, seja fumando ou beijando alguém. Ouvir isso fez com que a lembrança do beijo com Pedro m deixasse enjoado, quase sempre fico enjoado quando lembro mas estou melhorando em não sentir nada. Caminhamos mais um pouco falando de coisas que nada tinham a ver com nossa vergonha, até que chegamos à escola e pude seguir para longe dele quando vi seu pequeno grupo na entrada perto dos portões cinzentos. Fugi tão rápido fingindo que não os vi ou ouvi: André me disse oi e Raquel acenou. Não respondi a nenhum dos cumprimentos.

Entrei na sala de aula vazia e fiquei na minha cadeira, respirando com dificuldade. Pelos próximos cinco minutos tive que dizer a mim mesmo que era só respirar que as coisas ficariam bem. Olhei dentro da minha mochila e tirei de lá um papel de uma pasta verde. Era um dos papéis do meu pai, tinha pegado um ao confirmar que meu avô ainda dormia, foi algo totalmente equivocado, só me deu vontade e fiz. Agora estou arrependido, mas não vou dar para trás agora que minha curiosidade aumentou. Cruzei as pernas e fiquei o mais confortável possível na cadeira e aproveitei que não há ninguém além de mim na sala.

Comecei a ler.

Passei a maior parte do dia observando Eric dormir no berço, espero que quando ele ler isto não ache que seu pai é um tremendo estranho. Li em um livro velho que registrar qualquer coisa para ler depois no futuro é um ótimo meio para que os momentos não se percam, caso o tempo passe ou quem escreva tenha Alzheimer. Meu primeiro registro é o do meu filho dormindo, podia ser algo mais especial tipo, ele aprendendo a falar, desenhando, cantando ou fazendo qualquer outra coisa. Seria interessante ver. Sarah disse que posso me tornar escritor caso quisesse, mas eu não queria. Não ia deixar passar nada da vida de Eric para escrever sobre outros pais com seus filhos; na verdade, até espero poder contar ao meu filho o quanto ele foi a razão pela qual não decidi escrever um best-seller.

Havia lágrimas em meus olhos e ao limpa-las percebi que já havia derramado muito mais no final da folha.

Guardei a folha após terminar de ler.

Pergunto-me porque eu pai não iniciou um diário ao invés de folhas soltas, mas eu nunca poderei ter uma resposta já que ele nos abandonou. Olho para o lápis parado na minha mão suada e percebo que acabei escrevendo algo no verso da folha sem perceber inteiramente. Quando li lembrei-me da voz dele, lembrei inteiramente do rosto dele como não lembrava há meses. No verso, com palavras grotescas e exageradas escrevi: MENTIROSO.


***


Tivemos que nos reunir na aula de português.

Como o grupo dele estava sempre reunido eu tive que arrastar uma cadeira até o fundo da sala e fazer a roda perfeita deles ficar torta; eu sentei-me próximo a Privada e a Raquel. Júlia, André e Otávio estão na minha frente. Especificamente ele está na minha frente.

A professora perguntou a turma quais os avanços do trabalho. Me senti envergonhado ao perceber que não tínhamos pensado em nada, tínhamos apenas aquela lista com os nossos nomes.

— O que faremos? — Fui o primeiro a falar na roda.

Eles já deviam saber o que aconteceu porque estão me olhando e me evitando, parecia um jogo: se eu pegasse alguém me encarando estava ferrado por isso tinham que desviar o olhar rápido para o lado. Fingir olhar para o teto também valia, cinco pontos para quem fingisse uma coceira ou uma tosse.

Esperei que algum deles falasse.

Ninguém falou. A irritação começou a crescer dentro de mim; tudo aconteceu muito rápido hoje, primeiro Otávio na porta de casa de manhã cedo, o manuscrito do papai e agora esse jogo estupido de evitar contato. Pego uma folha de papel do meu próprio caderno e escrevo tão rápido que meu pulso dói. Levei menos de dois minutos e tentei deixar minha letra razoavelmente boa para que eles pudessem ler.

Entreguei à Raquel, primeiro, ela lia e passava para Júlia, ela lia e assim pro diante até que a folha voltasse para minhas mãos novamente.

— E então?

Novamente só a minha voz. Mas apenas por alguns segundos até que André falasse que seria uma boa ideia. Júlia concordou com ele — comigo — e foi o que me deixou mais surpreso. O resto do pessoal acabou assentindo à ideia. Ótimo.

— Podemos ir a sua casa de novo. — Privada diz.

Estou cansado de pensar nele com esse nome.

Peço a lista com os nomes para o primo dele para não ter que encará-lo e perguntar. Olho a lista; André a fez em ordem alfabética. O único que eu não tinha escutado até agora é o que está abaixo do meu: Ian.

— Você tem o nome do meu irmão. — Acabo dizendo e uma fração de segundos depois me arrependo de ter aberto a boca.

Privada... Ian olha para a lista e depois para mim. Seu sorriso é constrangido e amarelo. Ele pergunta: — Ele é legal como eu?

— Não.

— E você também não é legal. — André diz logo em seguida, o que faz todos rirem.

Acabo rindo também. Acabo olhando para Otávio, e ele para mim.

Sem querer acabo lembrando de uma postagem que vi na internet há dias: Quando estamos sorrindo acabamos procurando com o olhar a pessoa que nos faz feliz no momento. Acabo parando de sorrir.

— Preciso ir ao banheiro. — Murmuro e saio da cadeira em um pulo, saio da sala mais rápido ainda.



Após lavar as mãos ouço a porta do banheiro abrir com um estrondo.

Penso que Otávio deve querer vir falar algo, ou pedir desculpas de novo e já estava preparado para estirar o dedo como fiz antes, ou dizer a ele que parasse de falar pelo amor de Deus. Mas não é ele parado à porta; é Júlia.

— É o banheiro masculino. — Minha voz saiu débil, mas eu estava com vergonha. E se ela me pegasse enquanto eu subia o zíper?

— Eu sei — a voz dela ainda era potente e tinha aquela coisa, entonação, de fazer você encolher — só tinha que dizer uma coisa longe dos outros.

Fiquei esperando por cinco segundos para que ela começasse a falar. Ao se passar um segundo eu já quis me aproximar e sacudir seus ombros, gritar para que ela falasse logo. Porque, afinal, ainda estávamos nos banheiros dos meninos! O suor brotava como sementes no meu rosto, aposto que conseguiria sentir as gotas descendo pela minha bochecha como uma lágrima.

Júlia olhou para a porta à esquerda de soslaio por três segundos. Começou a falar depressa:

— Não culpe Oti pelo que fizemos na casa dele. Foi uma implicância sem pé nem cabeça, mas isso acontece às vezes quando se metem... Acho que você já deve ter entendido.

— Eu não o culpei. — Foi tudo que pude dizer antes que mais alguém entrasse no banheiro.

Um garoto do meu tamanho, suando como um porco e com o rosto sério. Ele olhou para mim, depois para Júlia e então um sorriso malicioso cruzou seu rosto antes que ele próprio cruzasse nosso caminho e fizesse um gesto obsceno com as mãos, o que me fez revirar os olhos. Julia não viu ele fazendo, por sorte. O garoto foi para a cabine, ouvi o zíper dele abrindo e pareceu-se com o sibilar de uma cobra. Acabei saindo do banheiro com Júlia ao meu alcanço, e quando chegamos ao corredor, ainda quietos, eu decidi perguntar o porque ela estava falando comigo agora. Não perguntei o que queria de verdade, que era: "Porque você ficou me encarando, sacaneando com a minha cara enquanto eu estava na minha? Porque simplesmente agiu como uma vaca, sem que eu tenha te dado motivos, porque se eu dei, pode me dizer quais foram?". Mordi a língua para não explodir no corredor com Júlia, acho que guardar a explosão seria melhor com ela. Respiro fundo enquanto escuto sua voz, contando, com sinceridade pura as suas razões.

— Porque estamos no mesmo grupo. Porque acabei percebendo que você não é igual a certas pessoas que já fizeram trabalho conosco, e Santo Deus, você não é nem um pouco que seja, um tremendo aborrecente por mais que eu ache seu silêncio chato. Otávio gosta de você.

Quis ficar ofendido com o início da confissão, mas foi o final em que prestei mais atenção. Otávio gosta de você, Otávio gosta de VOCÊ.

Isso não combinava nada com o que ele tinha me dito em frente a minha casa. Era como uma conta de matemática, uma fórmula de física, que eu não sabia mais fazer; perdi a total capacidade de saber se um mais é dois mesmo. Júlia me encara, parece constrangida de ser a mensageira, mas não me importo, acabo murmurando algo que começa com "V" e no final, ela assentiu. Acho que acabei perguntando se é verdade.

O garoto que estava no banheiro saiu e veio na nossa direção.

— Acabei flagrando vocês, seus tarados.

— Vai à merda. — Júlia rosnou.

— Puta.

O garoto se foi.

— Vamos voltar. — Diz ela, uma ordem que meus pés obedeceram. Júlia conseguia fazer com que sua sugestão soasse mais como uma ordem.

Nos Vemos à Meia-noite (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora