Capítulo Quarenta e Três

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"Como assim seu padrasto descobriu?"

Digito depressa.

"Minha disse que eu tinha algo a contar, então eu só fui lá e falei, não foi fácil ainda mais para um homem que não é nada legal com você. Eu disse. Ele ficou vermelho de raiva. Depois Ian perguntou o que era bi"

"Que cena mais Malhação!"

"Você disse?"

"Disse"

"Aposto que seu padrasto quase infartou"

"Ele ficou esperando que eu terminasse de falar para poder dizer que o FILHO DELE não precisava saber de coisas COMO ESSAS ainda mais quando está tentando SER ALGUÉM NA VIDA"

"Dramaaaa"

Rio para a tela. Raquel sempre tinha algo assim para falar. Os melhores são que os outros falam coisas parecidas ou digitam uma série de Ks.

Começo a digitar de novo, dessa vez com mais calma.

"Se meu avô estivesse aqui com certeza iria dizer que Robson passou a noite pensando nisso, ou que agora que ele já sabe pode até pensar em parar de falar bosta"

Vários outros Ks. Otávio está digitando, sempre que indica que ele está digitando meu coração dá uma guinada.

"Seu avô era uma pessoa sensata"

Sim ele era.

***

Quando enterramos meu avô foi bem próximo da lápide da minha avó. Eles estão juntos mesmo não estando mais vivos. O funeral durou pouco mais de duas horas. Otávio apareceu sozinho mesmo que eu insistisse para que não viesse. Ele segurou minha mão forte, um aperto seguro mesmo que ele estivesse arrepiado.

— Não precisava ter vindo. — Sussurrei. Não consigo entender o porquê ele quis vir sabendo que em pouco tempo cruzaria portões como esse depois. Parecia irracional.

— Eu gostava do seu avô. Ele foi nosso cúmplice. Ele me chama de garoto com nome de planeta.

— Sim. Eu lembro.

Não foi o momento ideal, nem o mais perfeito. Mas minha mãe conheceu Otávio como meu namorado (mesmo que não seja achamos melhor dizer para as pessoas que somos), Ian deu oi para ele. Meu padrasto apenas apertou a mão dele. Meus amigos chegaram pouco tempo depois, quando me viram recebi um longo abraço de dez braços. Acho que abraços precisam ser reconhecidos como o maior apoio que alguém pode te dar, porque eu posso me dispor a ouvir seus problemas dar batidinhas em suas costas. Posso te dar a solução para seus problemas, mas se não acontecer um abraço, as coisas não ficam reais, concretas, não ficam verdadeiras.

Achei que iria começar a chover, mas o sol assumiu o controle, eu suei a beça. Em determinado momento que estava tentando não pensar no suor que escorria nas minhas costas minha mãe me chamou em um canto. Ela estava usando um vestido preto que cobria quase todo seu corpo. Tomei cuidado para não perguntar como ela não estava morrendo de calor ou no mínimo molhada de suor.

Ficamos parado perto de uma árvore que tinha lagartas feias.

— O que foi?

— Vamos ali. É perto. - Foi tudo que ela disse antes de começar a andar sem olhar para trás. Ela sabe que não consigo me deixar abalar. Sou curioso de nascença.

Andamos pelo cemitério. Pensar assim é meio estranho, mas foi isso mesmo que aconteceu. Andamos pelo cemitério desviando das árvores e dos galhos caídos, passando por covas de mármore com fotos de pessoas que eu me recusava a olhar. Até chegarmos em frente à uma que minha mãe ficou encarando com seriedade.

— Aposto que você vai saber de quem é.

É do meu pai. Eu sabia antes mesmo de ver o nome dele ali. Sem foto, sem epitáfio, só o nome. Encarei como se fosse a minha própria cova.

Meu estômago deu um nó e se antes eu não conseguia chorar, consegui agora.

— Achei que ele não estivesse enterrado. Eu nem sabia que... Acho que pensei que o corpo dele tinha sumido depois do que ele fez.

— Não sumiu. — Tanto a voz quanto o rosto da minha mãe estão sérios, sem cor — Chamei a ambulância, tiraram fotos do quarto. Avaliaram o corpo dele e tudo mais que não gosto de lembrar. Parece que foi uma eternidade, seu avô ficou cuidando de mim por um tempo até eu ter coragem para voltar a dormir naquele quarto. Achei as folhas e guardei... Fiquei com vontade de rasgar. De queimar. Fiquei furiosa, mas o que eu poderia fazer com essa raiva já que ele não estava mais aqui? Eu deixei... O tempo passou... você sabe... Eu sei... estamos aqui agora.

Falando assim não fez com que parecesse mais simples. Por muito tempo fiquei com raiva do meu pai porque pensei que tivesse me abandonado e de certa forma, abandonou. Olhei para o túmulo dele e lembro que por um momento eu pensei se a decisão dele foi realmente certa ou covarde. Não tenho opinião para nada, nem um nem outro. Eu nunca vou saber o que se passava pela cabeça do meu pai. Fiquei muito tempo parado ali, depois eu saí. Não surgiu aquela vontade enorme de falar palavras bonitas que estavam guardadas faz tempo, nem senti vontade de me ajoelhar na terra apenas para dizer que estava morrendo de saudades. Caminhei de um túmulo para o outro sentindo que meu corpo estava no modo automático, fazendo coisas que eu sei que faria mas que não tenho condições de controlar. Estávamos em casa antes do sol se pôr, jantamos, fomos para a cama cedo e eu não consegui dormir. Revirar na cama naquele dia foi a única coisa que pude fazer. Passei a noite em claro sentindo uma flecha no meu peito sendo puxada depois lançada de novo. Pontadas de dor a cada minuto em que uma nova lembrança me atingia. Passei os quatro dias assim até decidir ir a casa de Otávio.

Unimos nossas dores e ficamos sofrendo juntos em silêncio.

***

Tirei o calendário da minha parede.

Arrumei o quarto, a outra cama foi dada a alguém. A um vizinho, não sei. Quando arrumei tudo fiz questão de deixar diferente, mas comum, habitual.

Fiz todas as atividades da escola.

Voltei a ver as aulas e participei de uma gincana onde tínhamos que fazer alguma brincadeira, eu participei de dança das cadeiras ao som de Xuxa. Foi legal.

Eu falava mais de Otávio para minha mãe.

Consegui ter mais ideias para roteiros e minha câmera foi mais usada que o normal com meus amigos.

No grupo do Whatsapp falamos sobre qualquer coisa a qualquer hora do dia. Às três da manhã André disse que acordou de um sonho onde foi sequestrado por lobisomens que transformavam as pessoas em monstros de algodão doce verde. Sim, tive que comentar o quão estranho isso foi e Raquel quis pesquisar o significado do sonho no Google. Passamos das três da manhã conversando para às cinco, depois nos vimos na escola para dar continuidade ao assunto.

Fomos ao cinema no sábado. Não segurei a mão de Otávio, pelo menos não do lado de fora, mas quando entramos na sala eu segurei à vontade, eu quis e fiz.

No domingo à noite minha mãe me deu seu colar de asas de anjo, dizendo que ficaria melhor em mim. Nos abraçamos antes de ela ir pegar o jogo de damas para que passássemos duas horas no chão da sala jogando.

Fui visitar o tumulo do meu pai, do meu avô e da minha avó também. Levei flores para cada um deles e levei uma caneta e um pacote de post-it amarelo. Para cada um deles escrevi um epitáfio como achei adequado, sempre colocando que no fim, eu os amava.

***

Coloquei o livro dentro da bolsa.

Depois tirei para ver as iniciais O.M. nele.

Fechei o zíper da bolsa e decidi que estava atrasado,meus amigos estão me esperando. 

Nos Vemos à Meia-noite (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora