A 16° carta

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Querido Elvis,

Já é um pouco tarde, talvez não muito, mas está escuro lá fora e todos já dormem aqui.

Já é um pouco tarde, e talvez este não seja um ótimo momento para escrever. Mas isso não importa, pois as noites são feitas para se dizer coisas que você não diria no dia seguinte, e eu sei bem disso.

Você me conhece, afinal, é meu professor de sociologia/filosofia, e vou poupar-lhe da perda de tempo que apresentações significam.

Sou uma garota com uma existência relativamente comum, na eterna e possivelmente não alcançavel do Grande Talvez.

Há algum tempo atrás, vi um sentido a mais em minha existência ao terminar a leitura do incrível romance "Cartas de amor aos mortos", e tive que compartilhar com meus amigos, que por sinal, também se apaixonaram à primeira vista pela idéia de autora; que consistia basicamente em escrever cartas, como desabafos, à pessoas mortas.

Bem, você não está morto, mas nunca fui muito boa em cumprir regras, então esta não é a primeira carta que escrevo à alguém vivo.

Então...você foi o escolhido da vez.

Devo alertar-lhe que meus textos são geralmente, bastante pessoais e possuem uma pitada bem grande de drama, por isso, não se veja obrigado a ir até o final. Não sou uma escritora tão boa assim. Como Gus, meus pensamentos são estrelas que não consigo alinhar em constelaçoes.

Talvez você queira saber o que se passa em minha cabeça nesse exato instante. Vou lhe dizer.

Estou me lembrando de momentos bons.

Faço isso quando estou triste, ou ouço minha música favorita, mas neste momento meus fones de ouvido estão ruins. Por isso escolhi mergulhar em momentos bons, simples e coloridos.

Talvez eles não façam muito sentido pra você, mas não consigo pensar em outra coisa pra dizer.

Era uma noite um pouco quente, como hoje, mas não o suficiente para nos fazer suar. Uma leve onda de ar frio se encarregava disso.
Estávamos eufóricos e sorridentes. Nós pulavamos e dancavamos enlouquecidamente ao som de uma banda de rock nacional, e o ar cheirava a cigarros e bebidas. Eu cantarolava, alto o suficiente para incomodar quem quer que estivesse ao meu lado, e tudo me parecia estranhamente brilhante. A música era um pouco mais calma, e eu absorvia suas palavras lentamente, de olhos fechados, sentindo o ar balançar meu cabelo.
E eu juro, que naquele momento, me sentia infinita.

Calma indescritivel.Felicidade borbulhante.Esses momentos são raros. E ainda assim, tenho mais deles em minha mente.

Eu observava o movimentos constante das ruas pelo vidro embacado do ônibus. No início daquele dia, tudo estava complicado, como um domingo acinzentado, e então, um simples afastamento de tudo, uma noite comum com algumas pessoas não muito próximas numa pizzaria, algumas piadas, conversas jogadas fora, um pouco de recheio sabor brigadeiro... E de repente tudo estava bem. Como um sábado calmo ensolarado.
Como aquela tarde no parque, deitada na grama, deixando o sol penetrar em minha pele, ao som de uma música qualquer.

E como me esquecer daquela festa? Alguns coquetéis de frutas deliciosos, yakishoba e muita música, e eu estava borbulhante. Tudo me parecia...diferente, colorido e devagar. Como se estivesse observando as coisas por uma perspectiva pouco mais longe que o normal.Alguns beijos memoráveis, e a animação que veio depois.

Ou aquela tarde na praça.

Não sei exatamente como defini-la. Azul seria uma boa palavra, mas talvez eu a esteja roubando de uma amiga que gosto muito.

Apenas...não há outra expressão para descrever aquilo tudo.
Sorvete de maracujá, conversas bobas e sem sentido, um beijo de despedida, a leitura rápida de um livro incomum, e o caminho para casa banhado por uma felicidade simples e calma. Como o céu, antes de o Sol nascer.

Sei que tudo isso lhe parece estranho,  e talvez eu esteja romantizando acontecimentos comuns.

Mas não se engane...houveram dias ruins. Como noites acinzentadas e doloridas.

Não estou me queixando, afinal, sem dor,como poderíamos reconhecer o prazer?

Uma das piores noites que me lembro foi pouco tempo depois do meu aniversário.
Eu estava na casa de minha melhor amiga, deitada no sofá, pensando em que roupa usaria para a festa que iríamos naquela noite, quando...de repente, tudo explodiu, e o garoto magrelo simplesmente me magoou.
Sei que corações partidos são algo comum, mas cara, eu havia acabado de me recuperar de uma decepção, e de repente, outra?
A noite foi um desastre.
Mas não se engane. Eu fui aquela festa, e estava muito arrumada. Usei meu melhor vestido, e até sapatos altos que machucaram meus pés. Fiquei com alguns garotos, experimentei uma bebida cara e horrível, e dancei bastante.
Eu devia parecer feliz, mas por dentro, tudo desmoronava.
E a partir daquela noite, tudo foi um pouco mais escuro.

Mas não foi a única, afinal, a montanha russa não desce apenas uma vez.

Os dias cinzas, eles foram mais frequentes atualmente, quando eu simplesmente não sabia definir quais pessoas queria ao meu lado. Quais eram meus verdadeiros amigos. Se é que estes existiam.

Não vou descrevê-los um a um, pois realmente acredito que a parte boa deve superar a ruim, e espero que esta carta lhe transmita mais sentimentos alegres do que tristes.

Acredito que neste momento você deva estar se perguntando qual o objetivo de tudo isso.

Bem, eu deveria escrever sobre o fim do ano. E é exatamente à isso que o "fim" de algo me remete.

Lembranças boas e ruins.

Tudo tem um começo, Elvis, e também precisa ter um final. O labirinto, por exemplo, seja ele a vida, a morte, ou o sofrimento.

Uma pessoa de merda, e um escritor incrível chamado Peter van housen me ensinou que alguns infinitos são maiores que outros.

Sei que houve vida antes de nós, e continuará havendo quando partimos. E a existência do ser humano é questionável em comparação a imensa importância do universo.

Eu, assim como Gus, costumava ser obecada por deixar uma marca no mundo. Eu queria ser notada. Ter uma existência extraordinária.

Agora, sei que talvez isso não seja possível.

Ser lembrado não é uma escolha.

E eu ainda não vejo muito sentido em tudo isso.

Mas você me deu uma resposta. Porque o sentido da vida está em dar sentido a ela.

Talvez não a correta, afinal, não é possível saber.

Mas ás vezes, uma resposta basta; e quero sinceramente lhe dizer que sou grata por você ter participado desta pequena, porém notável, parte de minha existência neste grande labirinto ao qual chamamos de Vida.

Lhe desejo inúmeras montanhas- russa que só sobem, e que seja imensamente feliz.

Com amor,
"garota perdida"

Cartas ao ParaísoOnde histórias criam vida. Descubra agora