CAPÍTULO I

697 160 918
                                    

— Sonhei com aquilo de novo.

— O mesmo pesadelo de sempre?

— Sim. Quer dizer, não sei direito... Parecia diferente.

E isso foi o suficiente para desviar a atenção de Seu Jonas do seu café e concentrá-la na filha.

— Diferente como? — perguntou enquanto analisava seus olhos azuis com uma curiosidade quase que científica.

— Diferente, uai — disse em meio a mordidas em um misto quente. — O menino esquisito ainda tava lá, mas ele precia um pouco menos macabro.

— Não sentiu medo dele?

— Dessa vez, não. Mas por que o interrogatório? — perguntou em um tom levemente irritado.

— Porque eu sou um pai preocupado! Não posso mais, dona Melissa? — questionou com uma firmeza na voz que indicava o quanto não tolerava insolência. Era um pai carinhoso e divertido na maior parte do tempo, porém podia se mostrar duro como uma rocha quando achava necessário. Mas dessa vez era algo a mais. A garota podia perceber uma certa ansiedade que não era comum àquele mineiro de meia idade.

— Pode, uai. Mas não tem motivo pra esquentar a cabeça com isso — disse de maneira esperançosa numa tentativa de elevar o astral da manhã e evitar uma briga. — Provavelmente isso é sinal de que estou me tornando uma mulher adulta que não precisa ter medo de um moleque que só existe em um sonho.

Jonas riu de maneira debochada e divertida.

— Adulta? Que eu saiba, a senhorita acabou de fazer dezenove aninhos. Nem dirige ainda!

— Ai, olha, sinceramente... vou me arrumar que eu ganho mais — disse, fingindo irritação mas no fundo estava aliviada por desviar a atenção de seu pai do assunto e devolver-lhe o bom humor de sempre.

Saiu da mesa da cozinha, em meio às risadas do pai, em direção ao quarto no intuito de se preparar para mais um dia de sofrimento na UFMG. Mal sabia ela que seus planos seriam virados de ponta cabeça em alguns instantes.

🔆

Porém, as tristezas diárias de um jovem universitário não tomavam tanto espaço em sua mente naquela manhã. Ainda estava pensando no pesadelo que surgia de tempos em tempos desde que Melissa se entendia por gente. Era sempre a mesma coisa. Se via em um castelo cercado por água, localizado em lugar nenhum, onde o clima era sempre horrível. Não poderia sair de lá nadando nem se soubesse e quisesse pois o mar era impetuoso demais. Tempestades violentas sempre estavam lá marcando presença, mas não conseguiam ser piores do que o aspecto sombrio e aterrorizante da construção. Em seu sonho, ela sempre estava olhando por uma janela, em desespero, até se virar para trás e se deparar com um garoto loiro que deveria ter em torno de dez anos. Ele tinha nos olhos castanhos um certo divertimento que o deixava com cara de pirralho atentado. Mas sempre estava sério demais para uma criança normal. A olhava fundo nos olhos e dizia: "Preciso te contar um segredo".

E fim. Simples assim.

Sempre acordava com uma sensação horrível e se roendo de raiva. Terminar um sonho desse jeito era tortura para uma pessoa curiosa.

Mas dessa vez havia sido muito mais tranquilo. A tempestade que antes a assustava agora parecia quase reconfortante e o menino que costumava ser a personificação do bicho-papão agora era quase amigável. Nada no sonho tinha mudado pra dizer a verdade. Quem estava estranha era ela.

Melissa sempre supôs que esses pesadelos eram consequência da fobia de água que seu pai tinha e acabava descontando nela. Não que ela fosse dizer isso a ele algum dia. Não era culpa dele a esposa ter morrido afogada durante uma viagem à praia e nem de uma enchente ter levado embora qualquer lembrança material que ele tinha dela. Nunca a conheceu. Seu Jonas Nascimento a adotou alguns anos depois, "como um lindo recomeço", era o que ele dizia.

O Legado do Sol • Livro IOnde histórias criam vida. Descubra agora