Fôlego

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Destranco a fechadura e abro a porta.

— Selena! — grito. — Precisamos fazer algo!

— O que está acontecendo?

— Nada... Esse é o problema.

Ela atravessa o umbral e encosta a porta. Caminho até a mesa da sala, inclino-me sobre a superfície, tapo uma das narinas e aspiro o pó distribuído em linha reta. Exorciso um demônio com o berro de êxtase.

— Okay, isso aí não é muito a sua cara...

— Eu estou de saco cheio, Selena — levo uma mão à tempora, tentando apalcar uma dor —, e estou longe de me importar.

— Sem querer ser moralista, mas é assim que vai ser agora?

— E se for?

— Ele é só um cara!

— Era o meu cara.

Meus punhos se fecham antes mesmo de eu sentir que os comandara àquilo.

— Chegou a falar com Kendall?

— De que lado você está?

— Posso estar do outro lado daquela porta agora mesmo!

— Não. Desculpe. — Massageio a testa. — É muita coisa... muito rápido. O mundo poderia parar de girar por um instante...

Caio sobre o sofá.

— O mundo não espera por nós — Selena senta ao meu lado, pousa um dos braços sobre os meus ombros.

— Eu nem sei por onde começar, não sei como explicar.

— Tudo o que eu sei é o que estão noticiando.

— É um ótimo trabalho o que eles fazem, né? Não deixam escapar nada.

Tem certeza de que você não se sabotou?

Coço a nuca, semicerro os olhos.

É nisso que você acredita, não é, leitor? Eu surtei quando não deveria e o Harry meceria mais. É compreensível, mas o que foi feito está feito!

Na hora, não. Depois, talvez.

— Vamos! É hora de desopilar.

— Onde?

— Verá!

[...]

Corro contra a água, corro sobre brasas, lanço o meu colar. Fugi das cinzas, outra cor sem nome, verbo ileso e casto. Salto como a flecha, adentro o abismo. Minha sina ou meu surto pudera ser o choro, vil, lupino ou uivos breves no ar, pois a chuva vem, revela o ponto fraco alheio e minha vista turva o nome, tal palavra, sou o rubor de quem? Assim está escrito, sei de cor, em sua perna...

Fez-me ponto fraco seu.

[...]

Ao longe, na calçada da orla vejo um Porsche estacionado, abandonado - sendo fiel à situação -, a porta do motorista aberta, os faróis acesos. Procuro o dono, não encontro ninguém por perto. Porém uma trilha de pegadas me guia a alguém, um jovem desolado em terno azul, camisa negra entreaberta, caminhando sobre a areia mediante sorvos de um cigarro. Os fios louros de seu cabelo bailam a frente de seus olhos, seus sapatos sociais estão em uma das mãos. Caminha descalço... Livre.

— Melhor? — pergunta-me Selena.

— Um pouco... Obrigada.

Ela sorri, me volto às marés. Meus pés também descalços são abraçados pela água salgada e espumosa e a areia móvel faz-me afundar alguns centímentros em si, sinto como se o chão se desfizesse sob mim. No bom sentido, esclareço. Não me deixo perder o equilíbrio.

Agacho-me, com os dedos indicador e médio desenho um coração. Dentro deste, escrevo nossos nomes e juro que tentei escrever no Livro da Vida, mas suas páginas não são de papel. Observo, então, nova maré chegar e levar tudo com ela, aluindo o esforço humano.

Como Javert, eu poderia me afogar esmagada pela incompreensão de tudo acima de mim. Por outro lado, que pessoa eu seria se não aprendesse com Valjean?

I Knew You Were TroubleOnde histórias criam vida. Descubra agora