O corpo reflete a inquietude da alma

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Estabilidade. Me lembro de ainda muito pequena, antes mesmo de conseguir dizer longas frases ou formular pensamentos muito complexos, que gostava de separar meus brinquedos em alguma ordem que fizesse sentido. Seria mais fácil encontra-los assim, então para cada tipo de brincadeira, eu já sabia onde determinado objeto estava. Essas manias me acompanharam por toda minha vida, já não eram só manias, agora eram um "lifestyle". A roupa do treino nunca passou da lavanderia, e o copo de leite sempre esteve ao lado esquerdo do prato, nunca pisava nas linhas que dividia os blocos de cimento da calçada, e meus livros sempre ficaram separados por ordem de tamanho.

Na adolescência me lembro de elaborar cada passo do meu intercambio junto com mamãe, fizemos todas as minhas rotas, e lugares essenciais. Então o ano em que estive na Itália foi muito proveitoso e consegui fazer tudo que quis, até mesmo beijar algum italiano charmoso para dizer para minhas amigas que eu primeiro beijo havia sido em uma vinheira no interior de alguma cidade italiana.

A questão é que sempre gostei da estabilidade, ela me faz ficar segura e me ajudou a pensar com mais clareza. Algo que você dá muita importância quando todo seu trabalho depende exclusivamente de suas decisões.

Agora, dentro desse carro levemente iluminado pela aurora do dia que despontava o céu, e ao lado de uma Kang Seulgi adormecida, me questionava o quando dessa estabilidade ainda estava ao meu poder, porque todos os momentos que eu dividia com a morena era uma representação clara de como eu não conseguia prever os nosso próximos passos, nem meus sentimentos. Eu queria estar mais brava com ela do que estava.

Eu estava úmida e cansada, com uma fome que não poderia medir em palavras, sentia meu estômago se retorcer, perdi as contas de quantas horas ficamos presas aqui, e ainda quanto mais tempo eu ficaria sem ingerir algo. Só queria tomar um café quentinho e poder finalmente dormir um pouco.

A luz se tornou mais intensa, a qualquer momento o sol nos daria bom dia, então uma curiosidade se instalou em mim. Não me lembro a última fez que vi o sol nascer, e nem qual o era o sentimento. Desci do carro e me encostei do capô me perdendo no horizonte a minha frente. O céu estava majestosamente limpo, ninguém diria que passamos por uma tempestade como na noite anterior. O som dos pássaros aumentava a cada minuto, assim como eu, estavam esperando pelo sol.

"Eu decidi que quero ser sua amiga"

Era realmente muito estranha aquela fotografa. Imprevisível em todos os níveis, e totalmente não confiável. Mas ainda sim eu estava aqui, esperando para que ela acordasse. Seria justo ir embora, seria o mais certo. Assim deixaria claro que não quero sua amizade, nem os seus serviços, voltaria ao habitual, ao estável. Mas tinha algo de tão intrigante na outra, que mesmo que ela me parecesse só um idiota arrogante, ainda deixava com que ocupasse minha cabeça, a fazendo esquecer que muito provavelmente não iria trabalhar hoje, e que ainda estavam presas no meio do mato.

Eu sorri. Porque era o que me restava, e porque, contrariando toda lógica do mundo, eu não estava preocupada, pelo menos não a ponto de querer parar de olhar esse céu imenso e desejar que em todos os meus dias eu sinta essa imensidão. Ela é de fato uma mulher muito estranha, e talvez seja contagioso.

- Bom dia – A voz de Kang Seulgi estava rouca. Ela caminhou até o meu lado, contemplou o que eu admirava há alguns minutos – É bonito.

- É lindo – Respondi entusiasmada.

A polidez do diálogo era muito diferente da raiva que senti durante a noite, um sentimento pouco conhecido por mim, nunca fui boa em aceitar sentimentos extravagantes. Paixão, fúria e ódio eram sentimentos inteiramente instáveis, então evitava senti-los, e quando não era capaz, eu tentando ao menos controla-los, o que não aconteceu quando deixei toda minha frustração sair em forma de gritos. Seulgi merecia todas as palavras, e merecia também as que eu só pensei. Pelo menos foi o que senti a noite toda.

As Cores da LiberdadeOnde histórias criam vida. Descubra agora