Depois que se perdeu de sua mãe no porto de Irbena, Margareth passou os seguintes anos de sua infância com Beatrícia, uma doce senhora dos campos da vizinhança que sempre foi amiga de sua família.
Ela também planejava ir para Kaena junto de Rosa e da pequena Marga. Mas, em meio a toda a multidão nervosa e apressada daquele dia, não teve escolha senão segurar a mão de Allboire até que tudo acabasse. E, quando tudo acabou e todos os empurrões cessaram, o navio já havia partido sem as duas.
Depois disso, ficaram apenas elas e uma casa de um só cômodo, escura, vazia e cheia de buracos entre a madeira velha das paredes.
Elas precisavam se mudar a todo o momento. Faziam isso quando recebiam a notícia de que um vilarejo por perto foi atacado.
No começo, Margareth paralisava com o desespero de Beatrícia e precisava ser pega no colo para deixar a casa. Mas, depois de um tempo, na terceira ou quarta vez em que isso aconteceu, tudo passou a ser quase que normal para ela. Assim como os animais migravam de um lugar para outro quando a natureza era hostil demais para que pudessem sobreviver.
Nenhum outro navio de busca veio. Ao menos, nenhum outro que elas ouvissem falar sobre. Então, chegou um momento – um momento bem específico, quando estavam jantando um copo d'água e olhando as poucas estrelas do céu – em que Marga e Beatrícia aceitaram que nunca mais veriam sua família de novo. E que elas eram as únicas com quem podiam contar no mundo.
Mas Margareth era apenas uma criança e Beatrícia já estava velha demais. E elas não podiam estar a todo o momento atentas às notícias dos vilarejos vizinhos. Precisavam se preocupar com a comida e com as tempestades que derrubavam casas e com os ladrões que apareciam de madrugada. E, depois de um tempo, elas deixaram de pegar as notícias, e deixaram de se preocupar com os ataques, e começaram a dormir de verdade durante a noite.
E foi assim que Beatrícia foi assassinada.
Afinal, era começo de tarde e elas riam dentro de casa.
Beatrícia cozinhava alguns ovos, porque aquela havia sido a primeira vez no mês em que conseguiu alguma comida que prestasse. Elas deviam ter percebido que o vilarejo estava esvaziando e que apenas por conta disso havia sobrado ovos para as duas naquele dia.
Elas deviam ter percebido, mas, em vez disso, apenas esperavam que os ovos ficassem prontos.
— Tícia, já está pronto? — Margareth balançava suas perninhas para lá e para cá, sentada sobre a cadeira de costas para janela da cozinha. Ela encarava o fogo da lareira estralar e segurava seus cabelos suados pelo topo da cabeça.
— Só mais um pouco, menina — disse a mulher, abaixada em frente ao fogo, sem voltar os olhos para a figurinha curiosa. Ela a chamava de "menina". Nunca conseguiu chamá-la de outra coisa que não fosse isso.
Marga respirou fundo e continuou a encarar a lareira, impaciente. Aquela seria a primeira refeição decente que faria em tanto tempo. E seu estômago roncava.
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Vossa Alteza | ⚢
Ficción históricaLIVRO UM. Em meio a uma guerra civil inabalável, a camponesa Margareth Allboire é vítima de um misterioso ataque em sua vila, situada no leste de Irbena, e precisa lidar com o novo lar que passa a habitar contra sua vontade. Certa de que o castelo d...