00: o que houve antes

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Uma pétala cor-de-rosa foi o que tornou vívidos os pensamentos de Margareth Allboire. Se é que este fosse o seu verdadeiro nome.

Aos nove anos, não espera-se que uma criança saiba de muita coisa. Mas, em Irbena, nove anos eram o suficiente para presenciar grande parte dos horrores que uma guerra civil poderia lhe providenciar. A ida de um pai, o desaparecimento de uma mãe, a morte de uma amiga, a violência de um homem e a perda de um lar; tudo como pequenas partes da lista de tragédias ocorridas frente a alguém tão frágil quanto uma menina de nove anos e alguns meses.

Mas, nesta noite, em seu aniversário de dez, ela receberia um presente. Devo afirmar que não trata-se de um presente usual, como os demais. Este foi um presente distinto. Um presente que só poderia ser dado em uma guerra.

Primeiro, ela foi salva de sua morte. Segundo, ela fez uma amiga. E terceiro, esta amiga lhe deixou uma pétala cor-de-rosa.

É difícil remeter-me àquela noite, mas farei o meu melhor.



Naquela nada habitual madrugada, o Reino Gálago rugia de dor.

Os ventos ao norte suspiravam pelos recantos silhuetados em montanhas, o rio mais próximo da cidade corria solitário, em seu próprio recinto, e as nuvens flutuavam feito almas penadas pelo céu. E Margareth era a única que, naquele momento, presenciava tudo aquilo.

Jovem, pequena e coberta por uma túnica de aura angelical, a criança fitava a lua e sussurrava uma canção de ninar numa língua estrangeira. Tamanha era sua sutileza, apesar de não haver ninguém por aqueles campos, que até o mais silencioso dos ventos ultrapassava o tom de sua voz.

Estava sentada naquele lugar há mais de uma hora. Foi tempo o suficiente para, a quilômetros dali, seu vilarejo ser atacado.

O que a salvou, eu diria, foi sua inconformidade. O dia havia sido de festa, Enrico enfeitou as ruas com pessoas e Eleanor fez o melhor para criar um bolo de aniversário, e todos os moradores pareciam felizes durante aquela tarde. Mas Marga, por algum motivo, sentia a necessidade de ficar só. Gosto de acreditar que ela pressentiu que isto ocorreria e por isso, durante a noite, fugiu de casa para caminhar pelo rio.

Mas estava tão desligada que mal conseguiu ouvir os gritos, sentir o cheiro do fogo, ver a fumaça evaporar-se no céu. Não percebeu que isso ocorria, até o último segundo, até o momento em que sua paz e solidão foi importunada por uma visita inesperada àqueles campos.

— Ei! — uma voz vinda do sul reverberou pelo local, de repente, trazendo a menina de volta à vida.

Ela enrijeceu no mesmo momento. Sua voz calou-se e os olhos azulados caíram da lua para o chão. Havia escutado alguém gritar?

De coração acelerado, virou-se na direção da voz e arregalou a face contra a escuridão. Não enxergava nada. O gramado alto lhe cercava e, mesmo que sem esse obstáculo, a obscuridade da madrugada não falhava em atrapalhá-la.

Ela encarou o breu dos campos por um longo tempo, mas tudo permanecia cada vez mais denso e vago e quieto. A ponto de fazê-la acreditar que, talvez, fosse tudo zombarias de sua própria mente. Enrico costumava lhe dizer que meninas de sua idade possuíam uma imaginação assídua e ela passou a achar que ele pudesse estar certo.

Respirou fundo, aliviada, e levantou-se do chão. Era apenas sua imaginação.

Depois do susto, seu corpo parecia pesar o dobro do peso e suas pernas tremiam sem igual. E aquilo parecia ser um aviso de que ela deveria voltar para casa e não arriscar-se tanto pelos campos vazios. Enrico lhe falaria isso, também.

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