Descobertas

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Era quinta-feira. Letícia ainda não lembrava de sua antiga vida, apesar das idas à sua neurologista; aquilo a frustrava. Desejava tanto se lembrar! Porém, doutora Marcela continuava a lhe dizer para ter paciência, a ansiedade em nada lhe ajudaria.

Não desanimava porque, apesar de tudo, estava rodeada de pessoas que lhe demonstravam carinho e amor: seus pais, Laura, o pessoal da ONG, até mesmo sua amiga Cláudia. E Ricardo, sobretudo ele. E como demonstrava! Principalmente na cama. Mas também fora dela, em momentos mais ternos, como contemplar o pôr do sol junto com ela no dia anterior em que voltou mais cedo da multinacional; escutarem músicas românticas na sala pelo notebook dele e dançarem colados; jantarem juntos; ou simplesmente conversarem sobre variados assuntos.

Cada dia tinha certeza de seu amor pelo marido, embora ainda não conseguisse expressá-lo. Qual era seu problema? Era apenas uma frase: Eu te amo. Por que não conseguia dizê-la? Ricardo não tinha dificuldades em declará-la todos os dias, pelo menos uma vez. E ela não se cansava de escutá-lo.

Não se forçaria; diria quando estivesse pronta. Enquanto isso, demonstraria de outras formas o quanto o queria, correspondendo aos seus gestos de amor e carinho.

Havia apenas duas coisas na relação entre eles que, às vezes, incomodavam-na. A primeira eram as ligações constantes da tal Patrícia Andrade desde a festa em que reencontrou Ricardo. A mulher ligava, particularmente, à noite, quase como se adivinhasse que esse era o período deles estarem juntos e quisesse estragá-lo. E fazia questão de ligar para o telefone residencial; e Glória parecia fazer questão de anuncia-la, embora em um semblante neutro. Ricardo dava um jeito de encerrar logo a ligação ou mandava Glória dizer que ele retornaria no dia seguinte. Porém, Letícia não gostava muito de saber que seu esposo falaria com a ex longe das suas vistas, mas, por outro lado, ele não lhe escondia e ela própria havia garantido que não se importaria de ele manter aquela amizade.

A segunda coisa que incomodava Letícia era a preocupação de Ricardo de ela recordar algum fato do passado, sobretudo quando retornava da ONG; ele sempre lhe indagava sobre alguma lembrança e não escondia o alívio ao constatar sua amnésia. Ela fingia não mais perceber e não lhe questionava mais a atitude; mesmo assim, era desanimador não poder contar com ele para algo importante.

Ele não era o único, é claro; seus pais e Laura também não colaboravam, embora não lhe perguntassem a respeito sobre suas recordações. Sua amiga até regulava o pessoal da ONG sobre qualquer referência de sua vida antiga, o que ficou evidente quando Heloísa, a diretora de marketing, foi comentar sobre uma festa há dois anos de fim de ano na ONG: "Ah, e você estava tão bonita naquele vestido azul. E o seu...". Laura a interrompeu nesse momento com uma pergunta sobre o trabalho, encerrando o assunto. Ninguém disse mais nada e Letícia notou o clima e a troca de olhares dos colegas. Mais tarde, longe das vistas de Laura, tentou puxar o assunto com a diretora de marketing, mas esta desconversou, alegando estar ocupada.

Deus, parecia um complô contra ela! O que havia lhe acontecido de tão ruim para tentarem poupá-la?

Brigar não adiantaria e ela nem queria. Ainda se sentia insegura e desamparada demais sem sua memória para confrontar as pessoas de sua vida, mesmo que tais atitudes lhe irritassem.

Fora isso, tudo corria bem. O trabalho na ONG era fascinante! Fazia apenas quatro dias que estava conhecendo o local e as atividades realizadas; mesmo assim, logo se familiarizou com o ambiente e as ações sociais organizadas, bem como adquiria mais confiança em pequenos trabalhos relativos à administração da instituição.

Outras pessoas foram ampliando o mundo de Letícia: havia conversado por Skype com parentes de sua mãe que moravam no Rio de Janeiro, numa breve visita que fez na casa dos pais no fim da tarde de terça. Letícia se alegrou por saber que sua avó materna ainda era viva; tinha dois tios – irmãos mais velhos de Luciana – e mais cinco primos: três (dois rapazes e uma moça) eram filhos de um tio e um casal de outro. Todos prometeram visitá-la em breve.

Perigosas LembrançasOnde histórias criam vida. Descubra agora