Recordações

76 5 1
                                        

O barulho ritmado da caneta sobre o papel ocupava todo o ambiente.

Simón havia relido o contrato de Ámbar tantas vezes que conseguiria recitá-lo de cabeça com perfeição. Ele procurava um problema nele há horas. O menor que fosse o suficiente para ser usado como um motivo para ela negá-lo tão insistentemente. Algo dentro dele apontava o dedo acusador para ele e o passado que dividiam. Este era a única explicação. Aquele era o melhor contrato e, tecnicamente, não havia motivos para recusa. No entanto, ali estavam eles.

Ámbar havia dito não.

Simón entendia o lado dela. A partida inesperada no passado havia estragado tudo, mas ele não queria que isso causasse mais danos do que o necessário. Nunca tivera a real chance de se desculpar com Ámbar e, agora, talvez, fosse a hora certa. Por fim, a chance estava batendo-lhe a porta e o destino estava trabalhando ao seu favor. Faltava apenas ele saber como fazer isso.

Ele largou a caneta sobre a mesa e passou as mãos pelo rosto, pensativo. Precisava convencer Ámbar do acordo. Era a proposta perfeita e ele faria tudo para compensá-la pelos danos do passado. Bastava ela querer vê-lo e deixá-lo se explicar, mas, de onde ele via, isso parecia um cenário praticamente impossível.

Respirou fundo, levantou-se e seguiu até a cozinha.

Já passava da hora do jantar e Simón não tinha colocado nada no estômago desde o encontro com Ámbar mais cedo. Perdera a fome antes de ela desaparecer atrás das portas metálicas do elevador.

Há tempos Simón não parava para vasculhar as lembranças. Depois das fases do luto que sentia ao ser obrigado a deixar quem amava para trás. Ele se manteve calado por semanas, isolando-se mais e mais a cada manhã. Explodiu em episódios inesperados de raiva por coisas insignificantes. Barganhou consigo mesmo em diversos momentos de stalker nas redes sociais de Ámbar, escondendo-se por detrás de perfis imaginários e contentando-se em admirá-la de longe, em silêncio. A tristeza veio no ano seguinte quando seus pais o matricularam em cursos e mais cursos para mantê-lo ocupado e distante do telefone o máximo possível. A aceitação demorou um pouco mais. Foi depois de um foto no perfil de Emília, melhor amiga de Ámbar. Elas estavam em uma exposição, com um copo de milk-shake nas mãos, e largos sorrisos no rosto.

Ela estava bem.

Melhor sem ele.

Simón cortou as rodelas de cebola antes de jogá-las na frigideira aquecida, ouvindo o som do chiado delas contra o óleo quente. O cheiro característico tomou conta da cozinha. Por diversas vezes, distração era uma boa ferramenta para pensar. Tentar organizar os pensamentos, as lembranças e as mágoas.

Cada pessoa tem uma cicatriz dolorosa. Seja ela pequena, seja ela grande. Uma memória que a faz precisar de alento.

Ele acrescentou o restante dos ingredientes e os mexeu com cautela. Diziam que o tempo curava tudo. Mas nunca contaram quanto tempo passaria até as feridas dilacerantes e expostas, tornarem-se meras cicatrizes.

Simón perdeu a conta das vezes que sentia vontade de dividir seus sentimentos com alguém. Pedir conselhos sem medo dos julgamentos. Dos olhares decepcionados e acusadores. Apenas abrir o coração, confessando seus temores e pesadelos diferentes. Ele nunca foi bom com as palavras. Nunca foi bom em contar o que sentia.

Demorava até o "Estou bem!" se transformasse em "Eu não estou confortável com isso". Não era fácil para ele, colocar as próprias emoções acima das dos outros. Dividir suas vulnerabilidades.

Emma odiava isso nele. Dizia que isso os distanciava. Que um casal de verdade não guardava segredos um do outro. Que contavam um com o outro e tudo um para o outro. Era um time.

EstupidezOnde histórias criam vida. Descubra agora