(dentro das memórias de Helô)
HELOÍSA
Acho que foi numa manhã de sexta-feira. Ou talvez quinta-feira. Mas eu tinha certeza que outubro terminava e logo eu faria vinte e um anos em novembro.
No dia anterior, meu pai e eu havíamos assinado os documentos de compra da fazenda. Foi mais burocrático do que o esperado. A ação incluiu muitas certidões, cópias autenticadas e declarações, deixando-me complemente perdida. Até minha mãe teve que baixar em São Paulo! Pois, devido ao fato de ainda estar casada com meu pai, precisou colocar algumas papeladas em dia e dar sua assinatura. Foi notória a sua falta de paciência para coisas do tipo e certamente ela cogitava legalizar o divórcio nessas horas.
O desfecho do semestre na universidade caminhava para uma fatídica semana de provas e trabalhos. Na ocasião, eu estava na cozinha da minha casa. Em cima da bancada havia um porta-comprimidos, cartelas de estabilizadores de humor, cartelas de antipsicóticos e uma tigela de mingau de aveia comido pela metade. Minha mão direita segurava um tablet, enquanto a esquerda colocava as pílulas nos buraquinhos do porta-comprimidos, assim como dava uma e outra colherada na comida. Já meus olhos bisbilhotavam a tela com a grade de horários do próximo período. Num quebra-cabeça mental, eu tentava encaixar o máximo de matérias em qualquer espaço de tempo livre para o ano seguinte.
A minha solicitação de colação de grau tinha sido aceita, com isso, as inscrições para as universidades do exterior começaram a ser encaminhadas. Até aí estava tudo bem. O problema era encontrar um meio de colocar Jornalismo Econômico em meus horários.
– Só resta fazer essa matéria a noite. – falei comigo mesmo, jogando o estabilizador de humor na língua e engolindo com a ajuda de uma generosa colherada de mingau.
No período anterior, eu tinha cumprido a carga horária da maior parte das disciplinas obrigatórias. Fiquei encantada por fotojornalismo, rádio, televisão, filosofia e ciência da linguagem. Por outro lado, detestei Fundamentos de Economia! Detestei mais do que Jornalismo no Meio Ambiente e Sustentabilidade. Dava para engolir a professora hippie com seu sovaco cabeludo e seu discurso ensaiado – em todas as aulas – sobre os desmatamentos. Ou sobre as vantagens do novo pedestrianismo nas grandes cidades. Eu tolerava, afinal, não se tratava do meu sovaco. Do resto, quem vai se opor àquele defende a existência do pica-pau-amarelo?
Mas, estudar finanças exigia-me uma dedicação dobrada. Traduzir os termos técnicos de forma simplificada à população não era a minha praia. Eu não gostava do tema e dedicava apenas porque não dava para ignorar aquela área como se não fosse importante.
Em compensação, eu via beleza nos esportes e amava sua linguagem fluida, sempre tão fácil de dialogar! Não tive dúvidas quanto a escolha do tema do trabalho de conclusão, pois foi de todo o coração.
– Você agiu pelas minhas costas!
O tom de voz ferido ressoou na cozinha. Olhei para o lado e lá estava Anelise, com as mãos na cintura.
– O quê? – perguntei, à princípio sem entender nada.
– A fazenda! – respondeu enérgica.
– Ah... isso. – Revirei os olhos e voltei a dar atenção aos meus afazeres.
– Por quê? – perguntou e, percebendo que eu a ignorava, insistiu: – Por quê?
– Eu deveria dizer alguma coisa, mas fiquei com preguiça. – Mantive-me indiferente, rolando a tela do tablet.
– Nunca foi o seu sonho tocar com os negócios da nossa avó! Era o meu sonho! – choramingou e notei que deu um passo em minha direção.
– Aham. – Fingi tédio.
