Capítulo 39 parte 2

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(ainda dentro das memórias de Helô)

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O rosto de Francine não saía dos meus pensamentos. Não importava o que eu fazia! Se eu estava na universidade, se andava pelas ruas, nas cafeterias, assistindo tevê ou simplesmente quando eu fechava os olhos para dormir. Lá estava ela, assustada e cativa à um homem mau.

Tentei convencê-la denunciar Judah. Ela não quis. Estava com medo e vergonha. Chegou a pedir que eu não contasse para ninguém. Respeitei sua vontade, mesmo sabendo que não era o certo a se fazer.

Um pouco mais recomposta, ela limpou as lágrimas esquecendo-se da base branca em seu rosto. Assim que viu suas mãos sujas, sorriu triste. Ali entendi que não foi a primeira vez que aquele verme maldito a feria de diversas maneiras.

Perguntei em qual país tinha nascido. Ela era argentina, morou em Buenos Aires até o início da adolescência e o restante no Brasil. Pai argentino e mãe brasileira. Por isso falava português tão bem. Fiz questão de trocar nossos telefones. Eu queria fazer amizades na cidade e também queria ajudá-la de alguma forma, talvez mostrar-lhe que existia outras possibilidades além da bolha sufocante que Judah a tinha colocado.

Eu odiava Judah! Conhecia exatamente o tipinho de ser humano que ele era!

Houve um tempo que meus sentimentos eram ambíguos. Quando o vi pela primeira vez, não tive certeza do que sentia. O homem mostrou ser elegante, educado e erudito, estava sempre com roupas alinhadas, cabelo penteado e sapatos italianos lustrados. Mas alguma coisa me incomodava nele. Havia algo de errado. Seu excesso de confiança flertava com um tipo de vaidade esquisita. Eu não tinha certeza se gostava disso.

Na época eu era nova demais para distinguir que aquilo tudo era arrogância da mais corrosiva e pecaminosa. Não tinha como saber que ele se achava um deus. Infelizmente dei-lhe o benefício da dúvida. Deixei que o amigo e empresário de minha mãe, o grande maestro e diretor artístico, se aproximasse de mim.

A aparência perfeita escondia a podridão interna. Uma mente doentia. Um usurpador das emoções alheias.

Minha intuição estava certa quanto a ele.

Passei quatro anos tentando entender. Fiquei tempo demais deprimida, dividida entre remoer e esquecer.

Eu confiava na justiça divina, tinha certeza de que Judah sofreria as consequências espirituais de suas maldades. Mas e a justiça humana?

Eu fui forte com Francine, mas sozinha, enfraqueci.

O que mais tinha no mundo era gente ruim se dando bem. Isso tinha que acabar!

Quantas Francines passaram na vida de Judah? Quantas ainda passariam? Quantas carreiras e sonhos despedaçados? Quantas vidas ele causou infelicidade?

Quantas pessoas como eu, que pensou ter um amigo, alguém mais velho para se espelhar, e foi decepcionada!

Judah sabia envolver as suas vítimas. Ele as trazia para perto, descobria as suas carências e a sanavam com elogios, carinhos e presentes. Entrava em suas vidas, se metendo em tudo, tornando-nos independentes dele em todos os sentidos. Mas aí ele criava uma tensão, controlava o comportamento de suas vítimas e quando necessário, humilhava e ofendia verbalmente. As agressões físicas vinham em seguida; começava com um aperto mais forte no braço, uma segurada firme no punho, um simples tapa no rosto até virar algo muito pior. Depois vinha a calmaria, o momento de pedir perdão, o arrependimento cheio de justificativas, as promessas de mudança e toda essa ladainha. Então tudo começava de novo. E de novo...

Ainda bem que não cheguei a completar esse ciclo. Não sofri feridas físicas. Contudo, a minha pouca convivência com Judah gerou estragos o suficiente para anos de reparação. Ele entrou em minha mente e apertou o gatilho adormecido da minha doença psiquiátrica.

Eu sabia o motivo de ainda não terem descoberto essa sua façanha. O verme escolhia suas vítimas a dedo. Se essa tal vítima se rebelasse, ninguém acreditaria nela. Pois seu agressor possuía a porra do carisma de satã! A aparência atrativa; a natureza perversa.

Nem mesmo minha mãe, uma mulher tão experiente conseguia enxergar isso!

Afinal, Judah Horowitz vivia rodeado de divas como ela! Em sua agência havia meia dúzia de sopranos consagradas mundialmente. Ele as paparicava, as empresariava com excelência e não se arriscava mostrar sua verdadeira face. Nessas mulheres ele não tocava.

Judah gosta de meninas vulneráveis.

Pensar nisso me deixou desesperada. Fui forte com Francine porque alguém tinha que ser, mas sozinha, eu era frágil.

Senti tanta falta de Hans!

Já fazia um mês que eu havia chegado em Nova Iorque. Nas três primeiras semanas nos falamos todos os dias, mas, na quarta só tínhamos trocado mensagens. As coisas estavam caminhando para onde eu imaginava: o distanciamento físico nos esfriando.

Entretanto desejei tê-lo comigo ali no meu quarto. Não seria uma sessão de desabafo, eu jamais falaria da particularidade de Francine sem sua autorização. Eu só precisava do abraço dele.

Há cinco dias eu tinha presenciado aquela cena violenta. Desde então dobrei a dosagem do calmante. Ainda estava recente a voz chorosa, os sons dos tapas, o rosto borrado de lágrimas. Eu revivia em minha mente, me julgava por não ter ferido, ou quem sabe, ter matado Judah.

Droga! Aquele acervo de figurinos do teatro não tem uma câmera sequer! Eu poderia ter acabado com tudo ali!

Legítima defesa.

Mas aí eu sujaria minhas mãos de sangue.

Para sempre seria uma assassina.

Deitada na minha cama, meu peito se apertou. Tateei o colchão e alcancei meu telefone. Tentei ligar para Hans. Seria bom ouvir sua voz. Caiu direto na caixa postal. O pessimismo me fez pensar que era o início do nosso fim.

Mais um de nossos fins.

Virei de lado para ficar contra a janela. A escuridão da noite piorava o meu estado emocional.

Assim, fiquei na posição fetal, odiando estar tão suscetível. Tão vítima! Detestava não ter uma solução prática para esse tipo de confusão, pois meu humor se instabilizava, e a instabilidade gerava a falta de esperança, que gerava a desmotivação e culminava numa depressão.

Eu não queria me prostrar! Mas não estava conseguindo sair daquela "decadência".

Fechei os olhos e sussurrei uma oração.

– Deus, me socorra.

Um tempo se passou enquanto eu permanecia com as pálpebras cerradas, me recusando a chorar.

Então escutei a porta se abrir. Os meus olhos se abriram também.

Lá estava ele.

Hans!

Corri na sua direção.

Ele soltou a mochila no chão e fui recebida por seu abraço gigante. Chorei toda a minha tristeza a ponto tremer todo o corpo.

– Você veio. – Finalmente falei, agarrada a sua cintura e com o rosto afundado em seu peitoral.

– Eu disse que viria. – Uma de suas mãos acariciava a minha cabeça. – Por que está assim? Aconteceu algo?

– Apenas um dia mal.

Limitei-me na informação, pois com a sua chegada, eu logo ficaria bem.

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Penúltimo capítulo!!

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