Capítulo 27

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HELOÍSA

– Seus olhos estão tremendo.

Ciro, meu amigo da faculdade, cochichou para que Carlos e Nuno não ouvissem. Todos eles presenciaram as dificuldades que enfrentei nos primeiros períodos e, por isso, sempre me ajudavam. Mas foi por causa de Ciro que não reprovei em nenhuma matéria. Enquanto eu mal conseguia ficar de pé por causa da fase de adaptação dos medicamentos, ele assinava meu nome nos trabalhos em grupo e fazia aqueles que eram individuais sem eu sequer ter entendido a temática.

– Eu sei – parei de digitar em seu notebook velho e esfreguei as pálpebras. – Pensei que era psicológico, coisa da minha cabeça, mas está acontecendo... – Também sentia um pouco de tontura e boca seca. Ou seja, a situação estava ficando esquisita para mim. Então resolvi ser sincera com ele. – Tomei uma pílula a mais. – O problema foi que ele me encarou assustado. Imediatamente me defendi: – Foi sem querer, bom? Não sou uma potencial suicida.

– Eu sei que não é. Só estou tentando entender como isso aconteceu, já que você é tão organizada.

– Me distraí. – Falei vagamente. – O pior é que tomei meio calmante também.

– Você precisa ir ao hospital.

– Não foi uma dosagem alta, apenas dobrada. – Massageei as têmporas.

– Posso te levar ao pronto-socorro agora. – Insistiu.

Olhei para Carlos e Nuno um pouco mais afastados. Ambos em pé no pequeno espaço da cozinha conjugada com a sala. Eles faziam o nosso almoço: misto quente na misteira* elétrica. O cheiro de queijo derretido não estava me fazendo bem.

– Só preciso me deitar num lugar que não seja este sofá. – Apontei para o sofá de alvenaria da república onde Ciro morava. A espuma fina e a estampa cinza encardida não era nem um pouco convidativa. – Não confio nos seus colegas de apartamento. Vou deitar na sua cama.

– Ok. – Ele sorriu e eu me levantei.

– Leva um balde pra mim, por favor. Vai que... – não terminei de falar, mas fiz uma mímica estranha com as mãos na tentativa de encenar um vômito enquanto me arrastava para o seu quarto.

Assim que abri a porta, dei de cara com a cama de solteiro arrumada. Era um lugar simples. O cômodo tinha um formato retangular, estreito e de paredes pintadas de branco-gelo. Havia uma janela de alumínio, uma escrivaninha com um selo da universidade e um guarda-roupa minúsculo. Tudo estava limpo e ordenado, refletindo os bons hábitos do meu amigo. Estávamos acostumados a nos encontrar naquele apartamento ou em qualquer lugar dentro do campus. Eu preferia fazer os trabalhos em grupo na minha casa, pois tínhamos um excelente espaço e funcionários à nossa disposição, mas, as poucas vezes que Ciro esteve por lá, notei o quanto ficou intimidado com a ostentação. Por mais que eu tentasse fazê-lo se sentir à vontade, sua humildade sobressaía. Entendi que levaria tempo para ele se acostumar com coisas que eram normais para riquinhos como Carlos e eu. Desde então, a biblioteca, os gramados do campus, a moradia estudantil e o prédio da Escola de Comunicação eram os nossos pontos de encontro.

Deitei de barriga para cima, fechando os olhos. Segundos depois, Ciro apareceu com um balde e o colocou no chão em uma posição onde, caso eu quisesse botar o mingau de aveia para fora, bastaria virar a cabeça para o lado. Ele também carregava a minha mochila e quando a depositou na escrivaninha, pegou meu telefone e falou:

– Já tentei ligar para seu pai, mas está fora de área.

Ciro e Antônio haviam trocado contatos para se comunicarem em situações como aquela.

– Ele está dentro de algum avião rumo ao sul.

– E seu irmão?

– Deve estar por aí, distribuindo soberba por onde passa. – Ironizei, mas estava bastante chateada, não queria dar trabalho para ninguém.

– Não tenho o telefone dele. Posso ligar do seu?

– Esquece o Maurício. – Resmunguei não tão disposta a facilitar aquela busca por uma solução.

– E seus avós?

– Estão velhos demais pra serem incomodados.

Assim como tia Cris ficaria apavorada e tomaria vinte multas até chegar na república. Ou Laila, que estava se matando em dois empregos. Tio Soren, Viktor, Karen e Leandro estavam na Dinamarca, representando a família em um casamento de algum dos primos de terceiro grau dos Nielsen. Pensei em Julieta, também em outros funcionários da minha casa e até no reverendo Esdras, mas logo Ciro interrompeu meus pensamentos.

– E o Hans?

Desviei o olhar para o lado oposto e encarei o crucifixo simples pregado de parede.

– Acho tão chique ser católico. – Segui com outro assunto na maior cara de pau.

– Helô...

– Católico Apostólico Romano. Pura elegância!

Ele e Hans não eram amigos, mas se conheciam. Foram apresentados numa partida de futebol do São Paulo, no camarote do pai de Carlos. Depois disso, se esbarraram algumas vezes, geralmente quando Hans me buscava nas sextas-feiras na universidade (na época em que estávamos juntos).

– Tenho certeza que ele viria na mesma hora.

Ouvi e gemi com desgosto. Porque se existia uma pessoa que eu queria ali comigo, esse alguém era um certo loirão de um metro e noventa e seis centímetros de altura. Uma verdade que eu jamais negaria. Ele era o único com comportamentos coerentes. Prático. Silencioso. Atento sem ser chato. Só perguntava o necessário, só repreendia se eu merecesse. Ele me ouviria primeiro, nunca sendo invasivo demais e nunca indiferente demais. Ele se importava e pronto!

– Melhor não chamar ele não. – Por fim falei. Hans poderia ser a presença perfeita em momentos como aquele, mas meu coração ainda estava magoado desde que soube sobre seu envolvimento com Pamela. No feriado na fazenda (agora a minha fazenda) eu tinha tomado a decisão de buscar alguma emancipação emocional. Se Hans não falava ou não planejava o nosso futuro, eu não o faria sozinha. A esperança de que um dia nos acertaríamos ainda existia, mas, naquela altura da vida, eu precisava de uma posição firme vinda unicamente dele. Havia outro fator também: seria muito chato ele me ver naquelas condições.

– Nós podemos te levar para o hospital. – Ciro voltou a oferecer ajuda.

Imaginei meus três amigos nessa missão. Carlos era fraco para coisas de hospital, ficava pálido com cheiro de álcool e desmaiava quando via sangue. Nuno sempre muito atrapalhado e Ciro, bem, eu não queria incomodá-lo. Logo mais ele deveria estar no estágio e à noite eu sabia que trabalharia de garçom, bandejando para algum bufê classudo.

– Tenta o Maurício. – Falei certa de que meu irmão estava sobrecarregado de tarefas com a ausência do tio Soren na empresa.

Com presteza, Ciro fez a primeira tentativa de comunicação, ainda que fosse inútil insistir. Mas ele persistiu outras três vezes. Quando minha visão começou a embaçar demais, fechei os olhos me sentindo angustiada.

– Ih, ferrou... – praguejei com a fala arrastada. – Não vai ter jeito. Chame ele. Chame o Hans, por favor.

Meu orgulho que se lascasse.

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*Misteira: sanduicheira.

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