Capítulo 6 parte 1

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HELOÍSA

A calmaria veio. Assim, pude ter prudência para readequar certas coisas dentro e fora da minha cabeça.

É claro que quanto mais as memórias se restauravam, mais eu me tornava responsável por mim mesma. Esse vislumbre de independência iminente as vezes me assustava. Motivo?

Eu tinha muitos. Só não sabia explicá-los.

Mas, de modo geral, eu estava em paz. Grande parte dessa quietude era por causa de Helena. Com apenas três meses, a pequenina tinha total domínio sobre minha vida. Bastava um de seus sorrisos desdentados para que eu me sentisse a mulher mais agraciada do mundo. Se ela estava bem, eu também estava.

Numa proporção menor de causa e importância, vinha Hans. Parte da tranquilidade que eu vivia era garantida por ele. Sua prontidão em dividir os cuidados da bebê, a maneira que ele garantia a nossa segurança e seu inquestionável companheirismo elevava nossa relação diária a outro patamar. Se ele queria mostrar que nós dois daríamos certo, estava se saindo muito bem.

Ele não falou mais de amor, mas isso não me frustrou. Na verdade, me senti respeitada por esse assunto ser adiado.

Em compensação, aquilo que não foi dialogado, foi feito em demasia.

Hans e eu, dois seres com alta compatibilidade sexual, dividindo os mesmos ambientes (vinte e quatro horas por dia) era um verdadeiro perigo!

Certa vez, eu estava na área de serviço. Tal como a maioria das moças da elite paulistana, ou seja, com zero experiência em tarefas domésticas, me encurvei diante da máquina de lavar para entender os significados dos botões. Roupinhas de bebê já estavam lá dentro, só faltava saber qual a diferença entre "lavagem normal" e "lavagem delicada". De repente, Hans apareceu por trás, segurou minhas ancas com força, esfregou a ereção na minha bunda e disse que me comeria naquela posição. Dito e feito! Segundos depois eu estava sem calça, inclinada sobre lavadora e sendo devorada por ele. Em outra ocasião, transamos como duas lagartixas na parede da cozinha enquanto uma omelete fritava na frigideira.

E foi assim. As coisas seguindo desse modo; qualquer trégua que Helena nos dava, a gente aproveitava para foder.

A verdade era que tudo terminava em sexo entre nós dois. Se ele saía do banho enrolado na toalha, se eu usava vestido, se ele era gentil, se ele era rude, se eu soltava ou prendia os cabelos. Se o luar deixava a varanda aconchegante, se a bancada da cozinha incitava nossa imaginação. Assim como o chuveiro, o tapete, o corredor e a mesa de jantar. Todos os cantos daquele apartamento foram rebatizados e éramos tão afoitos que, quase sempre, esquecíamos de usar preservativo.

Vivemos momentos tão intensos que minha noção de tempo ficou distorcida. Quando dei por mim, já se passavam dois dias desde a visita de Tia Cris e Viktor.

Mas minha tranquilidade foi colocada à prova no início da madrugada de sexta-feira.
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De olhos fechados, eu estava totalmente relaxada. Hans e Helena dormiam, e em breve, eu me entregaria ao sono também. Até que me veio um clarão de arder as córneas. Subitamente, me vi andando num corredor repleto de portas cinzas. Havia uma porção cabideiros com roupas coloridas, cadeiras escoradas pelas paredes de forma aleatória, um case de violoncelo, um tímpano e outro instrumento de percussão cujo nome eu não sabia. Se tratava dos bastidores de um teatro que, apesar em bom estado, se encontrava deserto. Nenhum som de oboé, nenhum cantor realizando vocalizes, nenhum bailarino a caráter e nenhum do violino do Spalla.

Será que hoje não tem concerto?, pensei confusa e logo senti dedos frios agarrarem meu punho.

Fui praticamente arrastada na direção de um dos camarins. Tentei identificar quem me puxava, mas só consegui avistar uma silhueta feminina e esguia. Não dava para ter certeza se ela usava saia ou vestido midi colado ao corpo. A posição das lâmpadas fazia uma sombra que ofuscava os detalhes. Seus scarpins batiam no chão ecoando por todo o ambiente. Uma mistura de imponência e sofisticação, contudo, medonha.

Pra onde a senhora está me levando? Sou filha de Mônica Williams! Tenho permissão para estar aqui! – falei assim que entrei no camarim.

– É óbvio que sua entrada é permitida aqui! Qual lugar desse mundo você não tem acesso? – a mulher virou de frente para mim. Estremeci ao me deparar com Pamela, que segurou meus ombros e voltou a falar: – Escuta aqui, sua ratinha bipolar! Conheço parte da sujeira que você esconde debaixo do tapete, mas se eu vasculhar um pouco mais, tenho certeza que encontrarei outras podridões! Então fique fora do meu caminho! Não será um filho bastardo que me impedirá de agir!

– Não sei sobre o que você está falando. – Por instinto, coloquei a mão em meu ventre e percebi que estava grávida. – Deixe meu bebê em paz.

– Não vai demorar para que ele descubra a verdade, mas enquanto isso, eu quero vocês longe!

– Ele não é o pai. Essa criança é só minha. – Retruquei ainda acuada.

– A mesma ladainha de sempre... – ela revirou os olhos. – Esse seu discurso está ficando cansativo, ratinha! Ele já sabe. Só estamos esperando que você falhe. E você falhará! Voltará a ter surtos, fases hipomaníacas e depressivas! Quando tudo isso recomeçar, ele vai te tirar essa criança.

– Cala a boca! – com súbita raiva, reagi gritando e empurrando-a com força. – Cala a boca!

Pamela cambaleou para trás, mas logo se recuperou e partiu com fúria em minha direção. Corri para fora do camarim. Alguns objetos cênicos estavam nomeio do caminho. Desviei de todos sem tirar as mãos da barriga. Ao virar acurva que unia os corredores, olhei para trás. Minha adversária se aproximavaaos gritos, dizendo que mulheres como eu não merecia ser mãe e que meu bebê pertenciaa ela.

Continuei driblando araras, pianos e cadeiras Tolix. Mais alguns metros, eu alcançaria o elevador aberto. A criança em meu ventre era só o que me importava, por isso, me preparei. Tomei um longo fôlego e minhas pernas ganharam velocidade. Finalmente entrei no elevador. Com Pamela se aproximando, apertei o botão que fecharia a porta e outro que me levaria para o andar debaixo. As mãos da minha inimiga tentaram impedir o fechamento automático da cabine. No impulso chutei seus dedos, que estranhamente viraram areia e caíram no chão.

No subsolo, o cenário se assemelhava com os bastidores do andar acima. Ao caminhar pelo corredor, sons de choro e murmúrio ficavam cada vez mais evidentes. Diante de uma porta, girei a maçaneta e me deparei com um acervo de figurinos. Logo avistei uma mulher sendo encurralada por um homem contra a penteadeira de maquiagem. Ele a enforcava com uma das mãos e com a outra, dava-lhe sucessivos tapas no rosto. Ela, conforme era agredida, chorava contritamente e fazia preces em espanhol.

Sem pensar, avancei sobre ele usando uma técnica de estrangulamento: o Mata-Leão. Apertei o pescoço do indivíduo com toda a força que tinha. Minha intenção era desmaiá-lo, para depois acudir a mulher. Mas o desgraçado riu alto, um tanto macabro.

– Do que você está rindo, seu filho da puta?

– Este é o meu lugar! Meu território! Enquanto eu estiver aqui, as coisas serão do meu jeito! Já aniquilei a carreira de muitas! Sua mãe e essa vagabunda estão em minha mira!

– Desgraçado!

Usei a força que me restava para enforcá-lo de vez. Ele continuava a rir, mas desfalecia, virava areia entre os meus braços e caía no chão. Depois que ele se transformou em pó, reparei em minha barriga.

– Meu bebê... – meu abdômen estava liso. Encarei a moça, que ainda orava em espanhol, e perguntei: – Você viu o meu bebê?

Bienaventurados los que tienen hambre y sed de justicia: porque ellos serán hartos.

Essa foi sua única sua resposta.

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Gostaram do capítulo?

Aos poucos o maior mistério está se desenrolando...

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