Capítulo 3

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Depois de três semanas, finalmente Vitória estava de alta do hospital. Seu braço ainda estava engessado, e Ana lhe dissera que teria que completar oito semanas para que pudesse retirar o gesso. A relação das duas havia chegado a um nível de intimidade impressionante, parecia até que se conheciam de outras vidas. Todos os dias, a jovem neurocirurgiã passava no leito da cacheada, conversando com ela, lhe dando atenção e zelando por seu bem-estar. Também para ela, que não abria seu coração para ninguém há bastante tempo, a chegada de Vitória havia sido um bálsamo. Conversavam sobre coisas completamente aleatórias, mas que pras duas faziam todo o sentido do mundo, e até mesmo o silêncio não era desconfortável quando estavam na companhia uma da outra. 

Deco, o ex-noivo de Vitória, continuou a tentar visitá-la, mas Ana sempre dava um jeito para que ele não conseguisse vê-la. Dizia-lhe que a paciente estava na sala de ressonância, ou que dormia e não poderia ser incomodada, ou que estava na fisioterapia... Apesar de baixinha, Ana Clara sempre fora extremamente corajosa, e, se para proteger a moça dos olhos mais lindos que já vira teria que se colocar em risco também, não hesitaria.

- Vi, essas receitas aqui são de alguns analgésicos que vamos precisar manter por mais alguns dias, pra evitar que tu sinta dores - ela dizia, carimbando as folhas. - Aqui tem todas as instruções de uso, tudo bem? Também já deixei anotadas todas as suas sessões de fisioterapia, que já alinhei com o Léo, e aqui estão os dias e horários marcados pra tu vir pro hospital. Como tu tá dormindo bem, não vou prescrever nenhum indutor do sono, mas se sentir qualquer coisa, pode me ligar ou mandar mensagem. Inclusive, vou até te passar meu número aqui.

- Por que será que eu acho que me passar seu número tem outros objetivos além dos meros profissionais? - Vitória pergunta, sorrindo de canto. 

- Porque talvez tenha - Ana responde, com seu meio sorriso clássico. - Mas deixa eu terminar minhas recomendações. Volte daqui a mais ou menos cinco semanas para retirarmos o gesso. Já programei também a data. Ah, e tem outra data que deixei anotada aí, super importante. 

- E qual seria?

- É que tu tem um jantar marcado com uma médica aí, que quer muito te levar pra conhecer um lugar especial. 

- Ah, é mesmo? E quem seria essa médica? Seria uma fofinha dos olhos caidinhos de jabuticaba, do sorriso mais lindo?

- Olha, não sei se ela tem esses olhos e esse sorriso, mas ela te acha incrível.

- Diga a ela que eu topo ir, então.

- É sério?

- Sim, Ana, eu vou sair com tu. 

As duas riem.

- Mas, Vi, já que tu morava com o André, pra onde tu vai agora?

- Já resolvi isso. Vou ficar uns tempos na casa da Júlia até achar um apartamento.

- Só que ele sabe que vocês são amigas. E se de repente for te procurar por lá?

- Não acho que vá. Talvez ele já tenha até fugido, sei lá. 

- De qualquer forma, tome cuidado, por favor - Ana pede, lançando a ela um olhar preocupado.

- Eu vou estar segura, não se preocupe. 

- Se é assim, então, me deixa te levar em casa. Entrego meu plantão em 10 minutos - Ana convida e baixa a cabeça, em um gesto tímido.

- Vou aceitar sua carona, dra. Ana. 

Na hora que levanta a cabeça, o olhar de Ana encontra o da advogada e ela finalmente parece achar a cor certa para aqueles olhos tão singulares.

- Marte - Ana balbucia, ainda olhando fixamente para Vitória.

- É o quê? - Vitória pergunta, rindo.

- Seus olhos, Vi. Passei dias e dias tentando encontrar a paleta de cores certa para eles, porque nunca tinha visto nada igual, e agora achei: eles têm cor de Marte.

- Além de médica, ainda é uma excelente poetisa - Vitória brinca com ela.

- Ah, não. Só quando algo me inspira muito mesmo - Ana sorri para ela. - Mas deixa só eu ir me trocar e pegar minha bolsa, que nós já vamos.

- Tudo bem, Ninha. 

- Ninha? 

- É meu apelido pra ti. 

- Mas por quê Ninha?

- Bom, primeiro porque Aninha é a minha irmãzinha, e tu merecia algo que fosse exclusivamente teu. Segundo, porque tu parece ser um lugar onde se quer fazer casa, onde se quer fazer ninho. 

- Tá aí, gostei disso. E agora, quem é a poetisa, dona Vitória?

- Só quando algo me inspira muito mesmo - ela repete o que Ana havia dito.

- Eu já volto.

Dito isso, Ana vai até seu quarto na ala dos médicos, se troca e pega sua bolsa com as chaves de seu Jeep. Busca Vitória no quarto e a ajuda a chegar até o carro, e, posteriormente, a entrar. Depois de alguns minutos, com o trânsito de São Paulo estranhamente tranquilo para aquele horário, elas chegam no prédio de Júlia, e Ana faz questão de levar Vitória até a porta do apartamento, segundo ela, só para "se certificar de que a moça estaria segura". Elas tocam a campainha e uma outra moça vem abrir a porta, sorrindo maliciosamente para Vitória ao ver Ana ali. A cacheada, envergonhada, faz as devidas apresentações e a médica, tão tímida quanto se era possível conceber, se despede delas.

- Então, Vi, agora que tu tá segura em casa, eu acho que já vou indo. 

- Não quer ficar pra tomar um chocolate quente com a gente, dra. Ana? - Pergunta Júlia.

- Querer eu até quero, mas realmente não posso. Tenho que ir pra casa dormir um pouco, amanhã volto pro hospital cedo. Obrigada pelo convite - ela responde, coçando a nuca enquanto olhava pra baixo.

- Tudo bem, mas pode voltar aqui quando quiser. Tenho certeza de que a Vi vai adorar sua presença - Júlia pisca para a amiga, que cora violentamente. 

- Obrigada pela carona e por tudo, Ninha - Vitória se aproxima, segurando seu rosto e lhe dando um beijo na bochecha. 

- Não tem que agradecer não, Vi. Foi um prazer. 

- Te mando mensagem depois, tá bom?

- Vou estar esperando. Bom, boa noite pra vocês. Prazer em conhecer você, Júlia. Por favor, cuide dela, sim?

- Igualmente, dra. Ana. Pode deixar, ela está em boas mãos.

- Tchau, Ninha. 

- Tchau, Vi. 

A médica entra no elevador e acena pras duas, que entram no apartamento logo em seguida. Vitória se joga no sofá, suspirando e sorrindo. 

- Então, Vitória Falcão, vai me contar agora o que tá havendo ou eu vou ter que arrancar a verdade de você? 

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