Capítulo II - Maristela

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Cozinhar é como fabricar amor. Satisfazer a necessidade de nutrição da pessoa amada é uma das mais nobres formas de demonstrar amor, esta é uma das coisas que aprendi com a nutrologia que é mais uma das coisas das quais abri mão pelo García. Meu marido é um homem bom, apenas está confuso. Mas eu tenho certeza de que quando nossa pequena Malu nascer ele recobrirá a consciência e entenderá quão lindo é o que estamos construindo. Lavar, descascar, cortar e cozinhar. Farei também uma salada de verão, bem tropical. Alface, rúcula, tomates-cereja, queijo minas, manga, gotas de vinagre de maçã. Acaricio minha barriga.

- Você gosta de salada, meu amor? - Pergunto sorrindo à Malu. - Você vai ser uma menininha muito feliz. Quanta sorte você tem! Já lhe contaram que o seu papai é um grande arquiteto? Porque ele é. E você é o que ele mais ama neste mundo. - Sorrio acariciando minha barriga. - E eu também te amo.
Minhas costas começam a doer, preciso apagar os fogos e ir me sentar. Com as mãos apoiando as costas eu despenco pesada sobre o sofá e respiro fundo. Eu nunca havia sentido tanta dor. É como se meus ossos e carne se rasgassem embaixo de mim. E essa dor sobe e desce aumentando e diminuindo de intensidade, mas sempre pior. Após alguns minutos a dor começa a progredir rápido demais e minhas forças decidem me abandonar. Minha respiração entrecorta e meu coração está acelerado. Percebo que posso estar com contrações. Mas estou apenas de sete meses.

- Aguente mais um pouco, bebê. - Respiro fundo. - Apenas mais um pouco. - Sinto o suor escorrer pela minha testa até meu pescoço. Estico-me no sofá para pegar meu telefone e ligar para o meu marido. Caixa postal.

- Amor, a Malu não quer esperar, temo que ela nasça ainda hoje. Preciso de ajuda. Não chego ao hospital sozinha. Eu ainda te amo. - Deixo em sua caixa de mensagens.

Assim que acabo de falar sinto-me molhada. Algo escorre pelas minhas pernas e enxarca o sofá. Alarmo-me, minha bolsa estourou! Mas na verdade era ainda pior, pois não era água, era sangue. O cheiro do sangue me deixa tonta e, quando o vejo acumular-se no chão, eu apago.

Acordo com o bip do aparelho de monitoramento cardíaco. Meu corpo pesa uma tonelada, meia tonelada em cada pálpebra. Esforço-me para abrir os olhos e olhar em volta. Minha visão ainda está turva. Paro os olhos em uma sombra e vejo meu médico em pé ao meu lado.

- Olá, Maristela. - Sua voz doce me conforta. - Que baita susto você nos deu hoje, hein? - Ele sorri cordialmente.

- Oi. - Quase não me ouço. Esforço-me um pouco mais. - Oi. - Agora posso me ouvir, embora bem baixinho.

Olho mais em volta e há uma mulher sentada na poltrona de acompanhante, em pé ao seu lado está o meu marido.

- Maristela, você precisa se acalmar. - Alerta-me o médico. Eu posso ouvir o bip acelerar.

- Eu quero que ela saia. Como ousam? - Exijo aos prantos.

- Já fazem dois meses. Nós queremos te ajudar. - O Luíz a defende, ele não é mais o meu marido, como esqueci-me disso?

- Ela tem razão. Não tenho motivo para estar aqui. - Ela levanta-se e sai.
Observo-a sair e me tranquilizo.

- Ela veio apenas porque uma mulher ligou para o namorado dela chamando-o de seu amor. Como se sentiria? - Ele me pergunta.

- Como eu me sentiria? - Ele não pode estar falando sério. - Me traiu por meses com essa mulherzinha e ainda tem a coragem de me perguntar como me sentiria? - Respiro fundo. - Eu cometi um erro, Luíz. Nós não precisamos de você. Malu e eu ficaremos bem. Vá viver seu amor com sua colegial. Não os quero por perto.

- Eu sou o pai. - Ele diz.

- Na verdade você não tem como saber. Vento que venta lá, venta cá. - Digo encarando-o.

- Eu vou pedir o DNA. - Ele aponta um dedo para mim.

- Minha gravidez é de risco, estou certa de que só poderemos realizar o teste após o nascimento, até lá, mantenha a distância. - Estou aos prantos, não tenho certeza se é isso o que quero. É mais uma medida de desespero em busca de alívio do que um sentimento verdadeiro. Eu o quero. Preciso dele.

Ele soca a porta, mas é contido por alguns enfermeiros.

- Vai me pagar por isso, Maristela. - Ameaça-me e faz doer-me até os ossos.

Quando ele é retirado sinto-me livre para chorar e derramar toda minha mágoa em solidão absoluta, exceto pela minha filha. Hoje eu só preciso chorar até o mundo acabar. Eu o amo, mas não sou o amor da vida dele. Meu amor merece um amor. Como eu queria que fosse eu! Mas não sou.

As semanas se arrastam sempre carregadas de dor e alarmes falsos. Agora somos apenas nós duas. As rejeitadas, abandonadas. Eu só tenho a minha bebê, e ela a mim. Conversamos o dia inteiro e ela ainda gosta de ouvir-me cantar. Apesar do ambiente pouco amistoso do quarto de hospital tento passar mais calor e alegria em minha voz do que estou na verdade sentindo. Este ambiente em tons de azul é muito deprimente. Hospitais deviam ser sempre em tons de laranja e amarelo. Sol, alegria e otimismo. Tons de azul me fazem fraquejar.

Eu passo quase todo o tempo encarando o mesmo teto, a mesma lâmpada. Como será a voz do meu bebê? Eu gostaria que ela tivesse os meus cabelos, meu tom de pele, mas a boca do pai.

- Você tem a boca do papai? - Sussurro.

Uma enfermeira vem me visitar logo pela manhã, como de costume.

- Bom dia, Maristela. Como estamos? - A alegria desta senhora é a coisa mais empolgante que eu vejo o dia inteiro.

- Bom dia. - Digo sorrindo. - Senti dores a noite inteira, mas acho que foi por causa do frio. Assim que o sol despontou tudo amenizou bastante.

- O sol é uma verdadeira dádiva! Mas quanto à pequena Malu. Ela tem se mexido ou ainda está paradinha?

- A Malu não mexeu a noite inteira. - Será que devo me preocupar? Eu penso.

- Vamos precisar estimular isto, ela pode estar em sofrimento. - Ela aperta minha mão entre as suas, tranquilizando-me. - Chamarei o obstetra para coordenar o procedimento.

Acaricio minha barriga enquanto vejo-a sair.
- Vamos, meu amor. Dê-me um sinal. Um pequeno sinal. Apenas nos tranquilize. - Digo a Malu.

- Bom dia, Maristela. - O obstetra entra na sala. - Nós vamos estimular respostas da Malu, queremos que ela reaja. Não temos sinais de sofrimento, mas como ela também não nos dá sinais de não sofrimento, gostaria de apurar tudo. Após estes estímulos ela nos dará respostas, positivas ou não, que nortearão nossos próximos passos. - Ele sorri cordialmente. - Vamos lá?

Começamos os estímulos e ela responde muito rápido. A enfermeira tinha razão. Meu bebê está sofrendo.

Seus batimentos aceleram rapidamente e põe toda a equipe de prontidão.

- Vamos precisar de uma cesária de emergência. - Diz-me o médico. - A enfermeira Lúcia acaba de salvar a vida da Malu. - Ele me olha nos olhos.

- Ela precisa de sangue. Está hipotensa. Perdeu muito sangue nas últimas semanas. - Um enfermeiro diz.

- Prepare para entubar! - O obstetra ordena. Vira- se para mim. - Seja forte, eu cuido de vocês.

- Chamem o Luíz, por favor. - Eu aperto sua mão.

- Ele será informado o mais breve possível. - Ele me tranquiliza.

- É difícil, mas escolha a ela. Se precisar escolher, escolha minha filha. Não quero acordar para saber que a perdi. - Eu o encaro.

Ele acena positivamente para mim. Eu apago.

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