Viro-me para trás e vejo minha mãe indo embora. A gente só está aqui de novo por minha causa. Eu quero ajudar, mas não sei como. Olho ao redor e não há nada que possa abrir essa coisa. Quero dizer, não há nada dentro do carro queimado.
Saio do carro.
Se eu encontrasse pelo menos uma pedra pontiaguda. Ando um pouco à procura de alguma coisa que sirva para o meu propósito até que encontro um martelo sem cabo. Apenas a parte de metal pesado. Só então eu percebo o quanto me afastei do carro, minha sorte é que o sol já está partindo, o que é o meu azar também, não quero me perder aqui.
Bem, eu só andei em linha reta, não virei para lado algum, é só voltar por onde vim. Beleza. Não é nada demais. Começo o caminho de volta e me apresso, porque se a minha mãe chegar antes de mim ela vai ficar com muita raiva por tê-la desobedecido.
Quando avisto o carro, vejo também a minha mãe parada no meio do barranco. Ela está com uma chave na mão, uma dessas de trocar pneu. Ela está me procurando. Se ainda não pegou o telefone, eu torço para que esse martelo quebrado que eu achei ajude.
Ela me encara séria, eu abaixo a cabeça e dou a volta no carro. Tem um homem apontando uma arma para ela.
- Quando eu comprei esta propriedade ela veio com o carro. Tenho planos para ele. - O homem diz-lhe impaciente. É um homem gordo, barrigudo, vestido com uma camiseta cinza de malha que é larga demais para ele e uma bermuda verde musgo que mal posso ver, porque a camiseta quase a esconde por completo.
A minha mãe me olha e acena positivamente com a cabeça. Ele vai matar ela, e depois me matar.
- MÃE! - Grito.
- LÍVIA, NÃO! - Ela estende a mão para frente tentando alcançar o braço do homem.
Ele vira-se para mim apontando a arma na altura do meu rosto. Minha mãe lança-se sobre ele e o acerta na cabeça com a ferramenta. Ele fica tonto, mas não cai, balbucia algumas coisas mas quase não tem reação. Ela segura a cabeça dele com as duas mãos e a empurra contra as ferragens do carro queimado. Uma. Duas. Três. Inúmeras vezes.
O sangue escorre pelo pescoço dele e ensopa a camiseta até que ele cai no chão de olhos abertos fitando o céu. Minha mãe pega a ferramenta e começa a golpeá-lo no rosto até desfigurá-lo e perceber que ele está morto.
Ela levanta-se com a respiração ofegante e larga a ferramenta no chão, tira os cabelos da frente do rosto.
- Eu mandei ficar no carro. - Diz-me andando em minha direção, e eu paraliso. - Mas estou feliz que não estivesse aqui quando ele chegou. - Ela sorri e para no meio do caminho. - O que é isso na sua mão? - Apontou para o martelo quebrado que eu segurava.
- Eu fui procurar isso. - Digo-lhe segurando o choro.
- Então entregue-me. É para quebrar o porta-luvas, certo? - Ela dá mais um passo e estende a mão.
- Sim. - Entrego-lhe o martelo. Eu não consigo deixar de olhar para o corpo inerte do homem desequilibrado.
- Não olhe para ele. Você agiu muito bem hoje. - Diz-me enquanto volta para pegar a ferramenta que usou para matar o homem. - Ele poderia ter matado a nós duas. Você viu como ele era completamente desequilibrado, não viu? - Ela entra no carro e começa a golpear o plástico deformado.
Eu percebo uma aliança na mão dele. Estava noivo. Aproximo-me para ver melhor. Afasto o mato que estava perto com o pé para enxergar o dedo dele. Em um movimento rápido ele agarra meu tornozelo e puxa com força, derrubando-me no chão.
- AAAAAAAAAAAA. - Meu grito é de terror. Ele vai me matar.
- LÍVIA? - Minha mãe grita de volta.
- Eu vou matar vocês, suas vagabundas! - Ele diz entredentes. Sobe em cima de mim e começa a me enforcar. O sangue dele pinga no meu rosto. Eu não consigo vê-lo e não posso respirar. Ele vai me matar. Até que suas mãos afrouxam ao redor do meu pescoço e ele cai completamente sobre mim.
Minha mãe o puxa para o lado e começa a golpeá- lo na cabeça.
- Eu vou abrir essa sua cabeça dura. - Ela diz enquanto bate nele. - Colocar juízo aí dentro. - Ela olha para mim, mas não para de golpear. - Entre no carro. Você não tem que ver isso.
Eu entro no carro de onde posso ouvir claramente o som da ferramenta contra a cabeça dele. O porta-luvas está rachado. Pego o martelo e começo a tentar quebrar o plástico. Após alguns golpes eu tenho sucesso, mas ainda não posso pegar o celular. Olho para frente, bem distante, uma mulher caminha com uma arma enorme nas mãos. É a noiva dele! Só pode ser ela. Saio do carro abaixada, não quero correr o risco de ser vista.
- Mamãe, ele era noivo. - Digo-lhe.
- Pensar nisso agora não ajuda em nada. Volte para o carro. - Diz-me ela de volta.
- A noiva dele está vindo matar a gente com uma arma enorme. - Digo-lhe por fim.
Seus olhos arregalam-se, ela olha para o longe e vê a mulher.
- Vá para o carro. - Ordena-me.
Eu corro para o carro queimado, ela segura-me pelo braço.
- Não este. Vá para o meu carro. E vá depressa. - Ela segura-me pelos ombros e joga-me no chão com força na direção do barranco, então pega a arma do homem que estava no chão e corre para dentro das ferragens do carro.
Eu caio no chão e ralo um pouco os braços, levanto- me depressa e começo a subir o barranco. Não posso ser vista. Com aquela arma ela me acerta mesmo de longe. Assim que alcanço o topo escuto o barulho ensurdecedor de tiros, três tiros, um atrás do outro.
Lanço-me no chão protegendo a cabeça com os braços. Quando os tiros acabam eu levanto-me e corro o mais rápido que consigo. Meu coração bate forte na garganta e eu me engasgo com minha própria respiração. Essa estrada não termina nunca? Ouço o som de mais tiros distantes. Ela vai matar a mamãe. Ela vai ver o noivo morto e vai matar a mamãe. Continuo correndo até avistar o carro da mamãe. Desacelero um pouco até alcançá-lo. Apoio as mãos nele e dou-me conta de que não vou conseguir entrar. Sento-me no chão e encosto-me nele recuperando o fôlego da corrida.
Observo atenta a estrada para o momento em que minha mãe chegar para irmos para casa. Mas ela não chega nunca. Sou apenas eu com esse odor execrável de sangue. Já escureceu completamente e eu tento, em vão, afastar os pensamentos sobre a possibilidade da minha mãe ter perdido essa batalha com a noiva do homem desequilibrado. Em alguns momentos chego a ter certeza de que ela não vem mais e que eu vou ter que mendigar até voltar para casa sozinha. É tanto medo que não consigo ficar triste. Começo a chorar de medo. Falta-me ar. Mas neste exato momento eu sinto alguém aproximar-se de mim.
- Levante-se. Vamos embora. - Diz-me gentilmente.
Eu levanto-me e entro no carro assim que ela destrava as portas. Só então eu vejo seu estado. Coberta de cal. Começo a tossir só de olhar.- Coloque o cinto. - Diz-me sorrindo. - Não quero te expor a perigo algum.
Colocamos o cinto e ela sai com o carro.
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Border
General FictionLívia é uma jovem de 15 anos com uma família difícil e uma vida atribulada. Após a separação de seus pais, algumas lembranças da infância que tinham sido apagadas pelo tempo vem a tona revelando uma série de segredos e uma face mais nítida da verdad...