Capítulo IX - Maria Sílvia

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- O que você disse ao Doutor Alexandre? - Pergunto-lhe. Eu devia ter parado isto antes.

- Disse o que combinamos. Me despedi e foi isso. - Diz-me tranquilamente. Ela pensou bem no que ia me dizer, isso me mata de raiva.

- Lívia, não é a hora de você mentir para mim. Porque essa ideia não é sua, eu conheço suas ideias e essa não é sua, ele colocou isso na sua cabeça tão sutilmente que você nem percebeu. - Perco completamente a paciência. - O que mais você disse a ele?

- A gente conversou sobre o divórcio de vocês e como isso me afeta. - Diz-me com cautela. Sua voz já começou a embargar.

- E como é que isso te afeta? - Pergunto-lhe gentilmente. Não é hora para chorar.

- Eu disse que meu pai só está querendo criar caso, porque ele vai perder. Ninguém tira os filhos da mãe. - Ela engole o choro como já havia lhe ensinado.

- A partir daí ele começou a te dar motivos para o seu pai lutar por você. Estou errada? - Pergunto-lhe.

- Não, mas ele disse que uma pessoa pode entrar numa guerra perdida por amor. Ele acha que meu pai me ama o bastante para tentar. - Agora ela me olha com receio, porque isso é contrário a tudo que eu já lhe havia dito.

- Ele diz isso porque não foi casado com seu pai por 15 anos. - Um ar de riso cresce dentro de mim, e eu não o contenho. - Seu pai só ama a si mesmo. Vivia me jurando amor e há pouco tempo até me agredir ele agrediu. Isso parece amor?

- Não. - Ela responde-me de cabeça baixa.

- Não fique triste. Você fez bem em me contar. - Paro o carro em frente a uma loja de materiais para construção. - Eu já volto. Enquanto me espera tente lembrar de mais detalhes desta conversa que teve com o Doutor Alexandre. - Solto meu cinto de segurança, checo o retrovisor, abro a porta do carro e saio. Bato a porta e entro na loja.

- Olá, em quê posso ajudar? - Um jovem de estatura baixa atende-me.

- Eu preciso de cal, é para a calagem de uma pequena plantação que meus pais têm nos fundos da casa. O terreno deixou de ser fértil e eles estão tentando recuperá-lo. - Explico-lhe minha história.

- É, sendo assim, melhor esperar pelo "Seu" Ronaldo. Eu não entendo bem de calagem. - Ele me dá um sorriso amarelo. Eu o intimido. O corpo dele grita isso.

- Sabe o que é? - Passo a mão pelo ombro dele. - Eu estou com um pouco de pressa. Será que você não pode apenas me vender cal? - Sorrio encarando-o.

- É que o "Seu" Ronaldo vai poder orientar a senhora melhor. - Ele gagueja.

- Senhora? Que senhora? - Digo-lhe sorrindo. - Vá pegar quatro sacas para mim, hãn? - Passo a mão pelo braço dele. - Vou te esperar aqui. "Seu" Ronaldo deve ser um homem muitíssimo ocupado e você já está aqui. - Pego o crachá dele e checo. - Ulísses. Pegue quatro sacas para mim.

- Tá bom. - Ele diz-me sorrindo e vai.
Cada saca de cal vendida nesta loja tem 15kg. Quando ele começa a colocá-las na mala do meu carro, percebo que talvez tenha exagerado na quantidade. Mas deixo estar, não quero nem ver o "Seu" Ronaldo, porque não quero nota fiscal. Ulísses bate o porta-malas do carro e põe as mãos na cintura com a respiração forte. Ele é um rapaz novo, mas que pele castigada pelo sol! Seguro-lhe a mão e deixo o pagamento pelo pedido e uma boa gorjeta. Entro em meu carro.

- Você precisa pagar no caixa. - O garoto grita.
Eu arranco com o carro e vou-me embora. Pego a interestadual e começo a me sentir tranquila. Vai dar tudo certo.

- Reconhece esta pista, filha? - Pergunto-lhe. Está tão quieta que perturba-me vê-la.

- É a pista do sorvete de flocos. - Responde-me ela com naturalidade. - Por que a gente está aqui?

- Porque vamos consertar uma pontinha que você me obrigou a deixar para trás naquele dia. - Digo-lhe. - Lembra-se de onde está o meu celular?

- Está no porta-luvas do carro. - Ela diz-me com os olhos arregalados.

Seguimos viagem até o nosso destino. Esta estrada não tem nada que esconda meu carro, então paro o carro onde tenho que descer o barranco apenas para deixar as sacas de cal. Me poupo de pedir ajuda à Lívia, porque ela não aguentaria. Escondo as sacas no topo do barranco, mas fora da estrada. Volto para o carro e avanço quase um quilômetro para deixá-lo afastado da pista, onde alguém poderia vê-lo.

- Desça. - Ordeno-lhe.

- Eu gostaria de esperar aqui. - Diz-me ela com cuidado. Seus olhos estão nublados, sem brilho, está apavorada.

- Você vai, porque é para você aprender a fazer exatamente o que eu disser. Porque quando você não faz isso, nos causa problemas. Agora desça. - Eu saio do carro e bato a porta. Eu a espero, mas ela não sai. Bato no teto do carro. - Saia logo daí, Lívia. - Mas ela não sai. Meu sangue começa a ferver, uma raiva cresce dentro de mim. Eu dou a volta no carro a passos largos e abro a porta.

- Mamãe, por favor. - Ela começa a chorar.

- Eu mandei descer. - Seguro-a pelos ombros e tiro- a do carro. Bato a porta e travo as trancas com a chave que está em minha mão. Seguro-a pelo braço e empurro-a para frente. - Ande.

Ela está tremendo com os braços encolhidos na altura da barriga.

- Rápido! - Ordeno-lhe. - Eu não tenho o dia todo e já não posso te carregar.

Ela aperta o passo e consegue me acompanhar.
O vento traz consigo uma nuvem de areia que nos encobre. Tenho agonia de tocar meu rosto. Meus lábios estão cortados. Eu te odeio, criatura, por me fazer voltar aqui. Prendo meus cabelos em um nó, mas não adianta muito, o vento continua a jogar os fios rebeldes no meu rosto e para todos os lados. Chegamos onde teremos de descer o barranco. Eu tiro meus sapatos, por causa do salto alto e os deixo próximos às sacas de cal. Puxo uma das sacas e a jogo para baixo fazendo-a rolar por quase 30 metros de barranco. Ela fura em alguns pontos, mas para lá embaixo quase cheia. Perde pouco conteúdo na queda. Então faço o mesmo com as outras três e elas amontoam- se no chão ao pé do barranco.

- Pise exatamente onde eu pisar. Porque se você pisar em uma parte solta do chão você vai rolar até lá embaixo. - Digo à minha filha.

Eu começo a descer pelas irregularidades do barranco como se fossem degraus. E ela segue-me de perto segurando-se com as mãos em alguns galhos secos que encontra pelo caminho.

Ao final da descida avisto meu antigo carro carbonizado alguns metros a frente. Que alívio! Ainda está aqui. Entro pelo lado do passageiro procurando pelo que restou do porta-luvas. Quando encontro, decepciono-me. O plástico derreteu com o fogo e solidificou de novo. Não posso abri-lo.

- DROGA! - Grito. Saio do carro. - Venha cá. - Chamo-lhe com um aceno de mão. - Venha ver o que acontece quando você não faz o que eu digo. - Ela aproxima-se do carro com cautela. Eu a empurro para dentro do carro. - Consegue ver o que era o porta-luvas do carro onde você guardou meu celular? - Ela faz que não com a cabeça. - É isso aqui. - Aponto-lhe com o dedo. - Agora dê-me meu celular. - Digo-lhe. - PEGUE A DROGA DO MEU CELULAR AÍ DENTRO! Você consegue tirar ele daí?
Ela começa a chorar de desespero batendo com as mãos no porta-luvas deformado.

- Eu vou buscar alguma coisa para quebrar isso no carro. Espere por mim aqui. - Digo-lhe.

- Não me deixe aqui. - Ela pede. - Eu tenho medo.

- Eu vou mais rápido se for sozinha. Não saia do carro e ninguém vai nem perceber que você está aí. - Digo- lhe e corro para subir de volta o barranco.

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