Capítulo XI - Maria Sílvia

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No topo do barranco começo uma caminhada ritmada até o carro. Não tenho tanta pressa, só quero um tempo sozinha para reorganizar as ideias, limpar a mente, espairecer. O tipo de chão muda de repente, só então eu percebo que estou de pés descalços, porque as irregularidades espetam-me as solas.

Chego ao meu carro, abro o porta-malas e encontro uma chave de roda. Vai servir. Pego-a e bato o porta-malas. Tranco o carro e volto para onde deixei minha filha.

Começo a descer o barranco com a chave na mão, eu escorrego um pouco e sou surpreendida.

- Ou, ou, ou, ou. - É uma voz rouca. Voz de homem. Eu olho para frente e eis que ele tem um revólver apontado para mim. Levanto as duas mãos na altura da cabeça, mostrando-lhe o que tenho nelas. - Não pode invadir a propriedade de alguém assim, garota. - A forma como ele fala comigo me enoja.

- Desculpe-me. Eu fui assaltada há alguns anos, e soube que meu carro estava aqui... - Eu começo, mas ele me interrompe.

- Quando eu comprei esta propriedade ela veio com o carro. Tenho planos para ele. - Diz-me rudemente.
Olho para frente e vejo minha filha ligeiramente atrás do carro. Faço que sim com a cabeça.

- MÃE! - Ela grita chamando a atenção dele toda para si. Não era isso que eu queria.

- LÍVIA, NÃO! - Não penso duas vezes e pulo sobre ele acertando-lhe a cabeça. Seguro-o pela cabeça e golpeio contra o carro repetidas vezes até que caia no chão. Pego a chave de roda e começo a golpeá-lo no rosto.

- Eu mandei ficar no carro. - Digo-lhe energicamente. - Mas estou feliz que não estivesse aqui quando ele chegou. - Ela tem algo em mãos. Saiu para me ajudar. - O que é isso na sua mão?

- Eu fui procurar isso. - Diz-me com cara de choro.

- Então entregue-me. É para quebrar o porta-luvas, certo? - Aproximo-me devagar, sei que já a assustei o bastante por hoje.

- Sim. - Diz ao entregar o objeto a mim. Então para os olhos no homem morto.

- Não olhe para ele. Você agiu muito bem hoje. - Incentivo-a enquanto pego a chave de roda. - Ele poderia ter matado a nós duas. Você viu como ele era completamente desequilibrado, não viu? - Entro no carro e começo a golpear o porta-luvas.

- AAAAAAAAAAAA. - É um grito agudo desses que arranha os ouvidos. Eu olho para o lado e ela não está aqui.

- LÍVIA? - Grito de volta.

- Eu vou matar vocês, suas vagabundas! - Ouço um homem dizer.

Saio do carro e o vejo sobre minha filha, asfixiando ela. Seguro a chave de roda com as duas mãos ergo-a sobre a cabeça e golpeio para baixo com tudo o que há de força em mim acertando-lhe a cabeça. Seguro-o pela roupa puxando-o para o chão. Volto a desferir golpes em sua cabeça com a chave. Dessa vez só paro quando abri-la.

- Eu vou abrir essa sua cabeça dura. - Digo a ele. - Colocar juízo aí dentro. - Mas olho para frente e ela está como uma estátua observando de perto. - Entre no carro. Você não tem que ver isso. - Ordeno-lhe e me obedece, mas não dura nem dois minutos.

- Mamãe, ele era noivo. - Ouço-a dizer.

- Pensar nisso agora não ajuda em nada. Volte para o carro. - Digo-lhe de volta.

- A noiva dele está vindo matar a gente com uma arma enorme. - Diz-me com urgência.

Olho para o horizonte e vejo a mulher que avança com uma escopeta. Sou melhor sozinha.

- Vá para o carro. - Ordeno-lhe.

A burra corre para o carro queimado, seguro-lhe pelo braço.

- Não este. Vá para o meu carro. E vá depressa. - Ela não poupa meus ovários, sempre me faz perder a cabeça. Seguro-a pelos ombros e empurro-a na direção do barranco, volto e pego a arma do homem que estava no chão. Entro no carro e escondo-me nas ferragens.

Checo a munição e tenho cinco tiros. Miro na mulher à distância, ela nem me vê daqui. Respiro fundo e solto o ar devagar. Apenas mais alguns passos. E atiro. Acerto o primeiro e arrisco mais dois, que acerto também. Saio do carro e corro para ver o estado dela.

Deitada no chão ela olha para cima, eu a vejo de cima.

- Não pode entrar aqui, moça. - Diz-me com doçura.

- Eu fiquei sabendo. - Respondo-lhe com a mesma doçura. Pego a escopeta dela. - Deixe-me fazer uma gentileza. - Miro na cabeça com a escopeta e atiro.
Por que você não veio antes dele? Teríamos nos dado bem e nada disso teria acontecido. Volto para as ferragens do meu antigo carro e dou um tiro com a escopeta no porta-luvas. Pego o que restou do meu celular antigo e guardo no sutiã. Limpo minhas digitais nas armas com a minha roupa e jogo-as dentro do carro.

Pego uma das sacas de cal e começo a espalhar cal por todo o carro. Por dentro e por fora. Abro uma saca após a outra e jogo cal até nos corpos do casal. Ninguém pega digital minha aqui. Olho ao redor para me certificar de que não estou deixando nada para trás. Pego minha chave de roda e o pedaço de martelo, simplesmente porque ele não faz sentido nesta cena. Subo o barranco e volto para o meu carro.

- Levante-se. Vamos embora. - Anuncio.

Eu abro o carro e entramos. Ela olha para mim e começa a tossir.

- Coloque o cinto. - Digo-lhe sorrindo. - Não quero te expor a perigo algum. - Brinco.

Colocamos o cinto e eu saio com o carro. Olho para o lado e vejo-a cabisbaixa. Descola algo da orelha e amassa nas mãos. Ela já não está com os brincos que pus hoje de manhã. Respiro fundo. Foi um dia complicado até mesmo para mim, e a Lívia é um pouco limitada. Não serei rude.

- Você tirou os brincos que eu lhe dei. - Digo-lhe com delicadeza. Ela continua em silêncio. - Não gosta deles? - Pergunto-lhe.

- Acho que inflamou. - Diz-me com a voz embargada. Ela está sentada para frente no banco, sem recostar-se. Eu olho suas costas e estão raladas com pouco sangue. - A gente vai tomar sorvete hoje? - Ela quer mudar de assunto. Isso a constrange.

- Mas você quer mesmo? - Pergunto-lhe rindo. Não vou insistir com os brincos.

- Quero. - Responde-me forçando um sorriso.

- Nós vamos para casa antes, tomamos um banho e depois compramos o sorvete. - Olho para ela. Está assustada. Não é para menos, o dia hoje foi complicado até mesmo para mim. - Não fique pensando nessas coisas. - Digo-lhe com carinho.

- Eu tive muito medo, mamãe. - Diz-me quase chorando.

- Eu sei que teve, mas já passou. - Tranquilizo-a. - Você vai precisar ser bem mais forte que isso daqui umas semanas.

- Eu não precisaria se vocês parassem. Qual é a diferença desta vez para todas as outras em que se separaram? - Ela fala rápido demais, não gosto deste tom de acusação.

- Eu não vou parar, Lívia! A diferença está nos motivos desta separação. Tudo gira ao seu redor, goste você disso ou não. Não é sua culpa, mas é por sua causa. - Explico-lhe com o cuidado de não falar mais do que ela está preparada para ouvir.

- E se eu quisesse ficar com o papai? Você pararia? Eu não quero que você brigue com ele. - Sua voz é hesitante, suas sobrancelhas estão unidas e ela espera uma resposta.

- Eu não vou parar. Se ele não quiser brigar comigo, ele que pare, porque, não vou mentir para você, eu vou atropelá-lo com força. - Digo-lhe com firmeza.

- Vai atropelar ele? - Pergunta-me ela dando um pulo no banco do carro.

- Eu vou ganhar de qualquer jeito. - Faço uma pausa para analisar seu semblante, está atenta ao que digo. - Não tenha dúvidas quanto a isso. - Dito cada palavra como uma sentença. - E é melhor para ele que eu ganhe na justiça. - Ameaço no final.

Ela está morrendo de medo de que eu machuque o pai dela e vai continuar a me ajudar como fez hoje ao lembrar-me do nosso sorvete de flocos.

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