Capítulo XIII - Clara

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- Alô! - Acordo em sobressalto com o toque do meu telefone.

- Olá, Clara! Alguns eventos mudaram o cenário. Eu gostaria que você viesse para minha casa hoje. - É a Sílvia. Ela faz uma pausa e respira fundo. - Para conversar com a Lívia. Você viria?

- Que.... Eventos..... Exatamente? - Pergunto-lhe sonolenta. Nem todos os meus neurônios acordaram.

- Ela não está muito bem. Eu a levei para tomar sorvete, porque precisava quitar a conta da última vez que tomamos e já fazia tempo. No percurso ela acabou comendo bolo de chocolate, outra vez, mas não foi muito. Ela não está conseguindo digerir. - Ela levou a Livi para um assassinato e acabou machucando-a no percurso, mas não foi muito sério.

- Eu achei que a gente já tinha um acordo sobre bolo de chocolate. E sorvete eu não vou nem comentar, Sílvia. Isso é inaceitável. Você é advogada, você conhece... - Sou interrompida.

- Não adianta você repetir o tempo inteiro que eu sou inteligente e conheço o organismo da minha filha. Apenas venha, tudo bem? - Percebo que isso nunca foi um convite.

- Eu estou a caminho. Tente não dar bolo de chocolate a ela até eu chegar pelo menos. - Desligo.

A Sílvia está perdendo o controle de tudo e vai acabar perdendo a menina para o idiota do Garcia. Deitada em minha cama eu medito em quanta sorte tenho por ter sido expulsa da casa dos meus pais quando tinha exatamente a idade da Livi.

Minha mãe era uma alcoólatra irrecuperável e meu pai um lunático que falava com cachorros e gatos, se não usava drogas, certamente era louco. Ela teria chances melhores sozinha do que com qualquer um dos pais. Hora de levantar, Clara. Obrigo meu corpo preguiçoso a descolar da cama e largar as cobertas.

Espreguiço-me deliciosamente. É um novo dia! Levanto-me da cama e abro as cortinas para deixar o sol entrar. Levanto os braços e checo as axilas. Tudo em ordem. Vou tomar um bom café e mudar de roupa para ver a Livi. Torradas e creme de chocolate com avelãs. Sorrio sozinha ao lembrar da Sílvia me perguntando para onde ia o caminhão de comida que eu ingeria inescrupulosamente todos os dias. Eu amo uma genética. A minha. Viro a garrafa de refrigerante direto do gargalo, moro sozinha mesmo, só eu vou beber isso. Como até sentir-me empanturrada. Volto para o quarto para vestir-me. Escolho um macacão de corpo inteiro de tecido leve e bem larguinho. Calço um sapatinho fechado. Amarro meus cabelos em um rabo de cavalo. As ondas disfarçam o fato de eu não o ter desembaraçado. Estou pronta. Peço um Uber e chamo o elevador. Desço do prédio e aguardo o carro na portaria. Ele para bem na frente do prédio.

- Srta. Clara? - Pergunta-me. - Sim. - Respondo-lhe.

Ele destranca as portas e eu entro. Jamais tenha uma dívida com um assassino.

Eu vivi por três anos morando de favor na casa de amigos e conhecidos simplesmente por não ter mais para onde ir. As pessoas me tratavam como um bicho. Eu comia o que restava nas panelas depois de todos terem sua refeição, porque ninguém me convidava à mesa, mesmo eu cuidando de praticamente todos os serviços de casa e dando o meu melhor para não ser um fardo pesado demais para quem me abrigava. Eu tentava conseguir um emprego, mas com meu currículo de ensino médio em conclusão eu não conseguia muita coisa. Fiz algumas faxinas, mas por passar muito tempo fora eu acabava deixando de fazer os serviços domésticos da casa em que eu morava e percebi que podia perder o teto por isso. Eu era feliz e livre por um dia na semana, quando eu já tinha feito tudo e todos já haviam procurado seu rumo noturno de festas e curtição. Sábado à noite.

Uma vez eu decidi que iria a um barzinho com o dinheiro de uma faxina que havia feito na sexta-feira. Me arrumei e fui. Não escolhi nada em especial, o primeiro bar cuja música me agradou e que tinha uma mesa vazia. Pedi uma cerveja e sentei-me. Eu queria chorar pela minha situação, mas esforçava-me para lembrar que aquele era o meu dia de refrigério. Eu não tinha que pensar em nada que me deixasse para baixo, eu queria conhecer um cara só para dar uns beijos nele e que ele bebesse comigo um pouco, trocasse uma ideia, e nada mais.

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