Capítulo XIX - Miguel

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Minha vista turva escurece até que eu não possa mais enxergar nada. Sinto as mãos delicadas da Clara pressionarem meus ferimentos em pânico sem saber escolher qual sangramento conter.

- Precisa de ajuda. - Digo-lhe com tudo o que resta de força em mim.

- Aqui não tem sinal! - Diz-me com urgência.

- Tente com o meu. - É a última coisa que consigo dizer antes de perder a consciência.

Minha cabeça dói e pesa mais de uma tonelada. O sol quente repousa sobre meus olhos fechados impedindo- me pela dor de abri-los. Mexo meus braços e sinto a agulha do meu acesso no braço direito. Escondo os olhos do sol com a mão esquerda e posso abri-los. Olho para o meu corpo e todos os meus ferimentos estão com curativos.

- Não, não se mexa. - A Clara me adverte. - A médica disse que são ferimentos graves. Você parece melhor agora, mas por várias vezes eu achei que fosse te perder. Morri de medo. - Suas sobrancelhas se unem entre os olhos e eu tenho a impressão de ela estar se queixando por eu tê-la feito passar por isso. Mas isso é culpa dela. Mandei ficar distante da Sílvia.

- Você não faz ideia do que ela faria com você caso eu não chegasse. - Digo-lhe.

- Você não faz ideia das coisas que ela já fez. A Livi não pode ficar com ela. - Diz-me. - Você não tem que me salvar quando eu grito, está bem? Eu escolhi essa luta. Era minha luta. Você não tinha que quase se matar para me ajudar.

- Você poderia ter morrido! - Lembro a ela do que a Sílvia teria feito se não tivesse usado toda a munição em mim.

- Mas é você quem está quase morto há três meses. - Diz-me impiedosamente.

Eu paro de falar e presto atenção em cada respiração. Não estou entubado. Olho para ela. Uma calça jeans velha que está grande demais e certamente não a pertence. Uma camisa masculina de botão que também não a pertence. Cabelos lavados, jogados para trás que agora estão quase secos e caem em cascatas para os lados da cabeça formando uma bela moldura para o rosto.

- Eu cuidei de você até quando você me mandou ir embora nos seus delírios por causa de febre. - Enquanto ela fala vagas lembranças tomam conta da minha mente. Sua mão segurava minha cabeça pela nuca e me empurrava uma sopa aguada no hospital. Eu a empurrei tão forte que ela caiu no chão coberta de sopa quente. - Eu fiquei por você. E fiquei porque a Sílvia venceu de novo.

- Ela não venceu. Eu estou vivo. Você está bem. Nós estamos bem, certo? Ainda vamos pegá-la! - Digo-lhe ternamente.

- Não, nós não vamos. Ela saiu do Brasil e levou a Lívia. O Garcia está preso por falsidade ideológica, sequestro, estelionato, corrupção de menores e uma série de outras acusações que ainda estão sendo apuradas. - Enquanto ela fala uma onda de esperança me atinge em cheio, porque tenho um trunfo que ela não conhece. - Quando a Sílvia saiu do Brasil ela colocou todos em alerta e o Garcia foi posto sob todos os holofotes. Ele é um homem condenado pela opinião pública agora. Condenado por ser frágil. Condenado por ser infiel. Condenado por ser manipulado. Condenado por ter participado. E condenado porque não há mais outro alguém a quem condenar. Ele perdeu o direito de responder em liberdade porque a promotoria acha que ele pode tentar fugir e se encontrar com a Sílvia. Até agora ninguém sabe ao certo o que deu errado no crime perfeito deles, mas o entendimento é que algo deu muito errado e este circo precisou ser armado para tirar o foco de todos do real problema. Alguém está manipulando alguém. Eles só não sabem quem.

- Mas é claro que estão equivocados. - Digo sorrindo. - A Sílvia e o Garcia são um casal em colapso, eles não estão juntos. Isso é impossível.

- Eu aprendi a desconfiar de tudo. Eles não são óbvios em nada. Quero dizer, eles são extremamente caricatos, mas uma caricatura que não os faz justiça.

- Existe a mais remota possibilidade de estarem juntos? - Pergunto-lhe.

- Eu não sei. - Ela respira fundo. - Podemos apenas ter rodado em círculos até agora.

- Ou é o que a Sílvia quer que pensemos. - Digo- lhe.

- De qualquer forma não temos nada. - Ela bufa.

A porta é aberta repentinamente e uma médica baixinha entra no quarto.

- Ora ora, Sr. Miguel, fico feliz que esteja melhor! - Ela tira o estetoscópio que estava ao redor do pescoço. - Como se sente? Consegue levantar as costas para que eu o examine?

- Por favor, me chame de Miguel. - Digo-lhe esforçando-me para levantar as costas.

- Oh, perdoe-me. - Ela sorri. - Eu sou sua médica. - Ela me estende uma das mãos. - Dra. Teresa, é prazer vê- lo acordado e consciente. - Ela encosta o aparelho gelado nas minhas costas. - Respire fundo. - Pede-me. - Parece muito bem, Miguel.

- Muito obrigado, Dra. - Digo-lhe sorrindo. - Quando poderei ir embora? - Pergunto-lhe.

- Logo. - Ela corta-me secamente. - Preciso verificar a função renal outra vez antes de liberar você. E gostaria de mais um exame de sangue, você chegou aqui hipotenso, quero saber como seu corpo reagiu ao tratamento que lhe demos. - Ela passa para os pés da cama e me espeta com uma agulha.

- Ai! - Reclamo e puxo a perna. - Parece que eu posso andar, estou certo?

- Corretíssimo. - Diz-me antes de abrir a porta para sair. - Mantenha a boa alimentação e logo terá alta.

- Vai, furacão! - A Clara bufa fazendo um gesto engraçado com o braço. - Essa médica é um caos. - Ela revira os olhos.

- Parece que você fez novas amizades por aqui. - Digo rindo. Ela revira os olhos novamente. E chega mais perto da minha cama. O assunto do qual estávamos falando requer mais discrição. - Nós temos uma coisa. - Digo-lhe olhando em seus olhos. - Pegue meu celular.

- Ele não parou de tocar nem por um segundo no primeiro dia, então eu atendi e nunca mais tocou. - Diz-me com a cabeça baixa.

- A pessoa que estava me ligando é a pessoa que mais precisa que este caso se resolva. - Eu procuro as palavras certas para tranquilizá-la sem expor minha cliente. - Acredite em mim, nós temos mais poder agora que o Garcia está preso do que antes. - Respiro fundo. - Por que você não vai tomar um banho e fazer um lanche? - Sugiro.

- Não posso ouvir sua conversa. Eu entendi. Estou precisando de um banho mesmo. - Ela sorri e sai do quarto.

Eu telefono para a minha cliente. Talvez ela pense que estou morto. Ela não me atende, mas insisto.

- Alô! Você está fora do caso. Não vou arriscar sua vida outra vez, além disso três meses é tempo demais. Deixou o Garcia ser preso no lugar de o transformar em nosso aliado e quase deixou que a Clara morresse. Você não serve mais para esse caso. Já pus outro em seu lugar.

- Sei onde a Sílvia está. - Eu minto. - Então seria uma pena caso eu tenha realmente perdido o direito de investigar para você.

- Onde ela está? - Sua voz está cheia de esperança o que me mata de arrependimento pela mentira.

- Confie em mim, este telefone não é mais seguro. A Clara o atendeu, você sabe disso. E ela obedeceu às ordens da Sílvia por muitos anos. Não tem como ter certeza sobre as intenções dela. O telefone está comprometido. Encontre-me pessoalmente, eu levarei a Clara como um presente e como a prova de minhas boas intenções.

- Se ela estiver ouvindo isso, como você insinua, não poderá trazê-la a mim e eu interpretarei isto como mais uma falha.

- Ela vai, porque a Sílvia está certa de que já ganhou este jogo e resta apenas humilhar seus adversários. A Sílvia não vai perder a chance de massacrar a Clara e esfregar na nossa cara o quão incompetentes nós somos. A Clara é sua.

- Não sou de dar segundas chances, mas terá a sua. Não ouse desperdiçá-la.

Ela desliga.

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