Capítulo XXIII - Maria Sílvia

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Estamos prontas. Eu tenho tudo sob controle. Somos só eu e minha vítima. A primeira. A que eu mais gosto de maltratar. E a que vai morrer tão mais cruelmente. Aquela que não se formou nas minhas entranhas, mas nas da mulher que meu marido amou antes de mim.

Eu gosto da minha filhinha. Eu sei disso. Mas a maternidade é extremamente superestimada. Olhando esse rostinho todo envelhecido que eu mesma manipulei, com os olhinhos não mais tão abertos como de costume eu me propus a listar 20 motivos para não matar você. Se até a Alemanha eu já tiver encontrado 20 bons motivos par manter você, talvez a maternidade tenha mudado algo em mim. Mas eu sinceramente não acredito que seja possível, visto que não paro de pensar no seu corpo rígido e frio.

Eu não sei ao certo, mas talvez seja uma forma de testar a mim mesma. Alargar meus próprios limites. Eu escolhi roubar você porque senti que merecia. Sua mãe estava morta! Eu não poderia ser tão má ao ponto de ser melhor não ter mãe nenhuma. Eu ficava pensando todos os dias em como era ridiculamente fácil matar você, e a ideia sempre perdia a graça.
Embora acabar com você ainda seja ridiculamente fácil, eu gosto da forma como sente medo. Posso te assustar por meses até você querer de fato morrer, mas talvez eu nunca vá te matar realmente. Seu comportamento servil, como quem espera levar uma porrada sempre acaba com toda a graça.

Motivo número 1: Não teria a menor graça.

- Tem algo errado com meu disfarce? - Pergunta- me.

- Não, querida! É perfeito. - Respondo-lhe sorrindo.

- Sente-se nesta cadeira de rodas. - Empurro a cadeira para perto.

Eu digo para se sentar, e digo para se levantar, digo quando falar e quando calar, esperando uma única oportunidade pra pisar nas suas costelas até quebrá-las em dezenas de pedaços. Ouvir o estalar dos ossos, ver sua agonia com a falta de ar que não permite nem chorar. Eu ia amar fazer isso. Me desafie só uma vez, para que isso tenha alguma graça. Faz tanto tempo que não sinto dor! Me machuca quando fazem mal a você. Mas eu gosto de causar dor, e imagine a comoção internacional quando descobrirem que eu te tirei da sua família materna apenas para te matar anos depois. Te torturar e matar. Isso é maior que minha dor individual.

- Mamãe? - Lívia vira o rosto para mim com uma sobrancelha levantada. Mas eu não respondo. - Está tão séria! Está com medo?

- Não. - Digo-lhe. - Estou animada com tudo o que está para acontecer em nossas vidas.

Nós vamos para o aeroporto apenas com duas bagagens de mão que coloquei no colo da Lívia para empurrar a cadeira de rodas pelo local. O que é perfeito para uma mãe e um filho alemães que estão voltando de viagem para casa.

Enquanto aguardamos nosso voo, eu puxo assunto com uma senhora que aparenta ter por volta de 52 anos. Sua bolsa Gucci a denuncia, mas é a única coisa que presta em tudo o que usa. Um vestido extremamente largo a cobre inteira e arrasta um pouco no chão sendo pisado vez ou outra pelos pés desajeitados calçados com uma rasteirinha dessas que carioca adora usar, mas para sair da praia. A barriga sobressaltada para frente salienta o umbigo na frente do vestido. Cabelos desgrenhados meio grisalhos e um rosto marcado pelo tempo.

- Esses voos sempre atrasam. - Jogo a isca.

- Mas não é, meu filho? - E ela morde. - Meu genro e minha filha não conseguiram vir da Inglaterra para me ver, mas foi por causa das crianças, eles têm três. Lindos. Mas sapecas. Saudáveis. - Ela pega a carteira dentro da bolsa e me mostra as fotos dos netos. - Este é o Charles, o mais velho, depois tem o Jasper e a pequena Rose.

- São crianças encantadoras. - Digo-lhe.

- E você? Um rapaz tão gentil não pode estar sozinho.

- Eu estou com a minha mãe, mas ela já "tá variando", coitada. - Digo-lhe apontando para a Lívia.

Pego um pacote dentro da minha roupa e coloco-o dentro da bolsa da velha enquanto ela acena e sorri para a Lívia.

- Eu preciso levar minha mãe para comer aluma coisa. Foi bom conhecer a senhora. Mande abraços do Brasil para seus netos. - Saio empurrando a cadeira.

- Por que fez isso? - A Lívia pergunta-me.

- Porque quando formos embarcar vai ter uma confusão por tráfico de drogas e ninguém vai olhar muito pra uma velha moribunda feito você nem pra um paspalho feito eu.

- Mamãe, ela é avó. Ela nunca mais vai ver os netos. Eu estou ficando triste.

- Você tem avós, Lívia? - Sussurro.

- Não. - Ela resmunga.

- Sente falta? Porque se sentir eu posso te deixar com a vovó lá atrás e ir embora. O que acha disso? O que acha de fazer o que eu mandei e simplesmente não pensar muito?

Motivo número 2: Depois de matá-la eu nunca mais vou poder decidir entre matá-la ou não.

Motivo número 3: Só posso matá-la de uma única forma na vida real, mas na minha cabeça eu posso fazer isso infinitas vezes de infinitas formas diferentes.

- Eu sei que é assustador, e eu não estou tendo paciência. Então vamos fazer o seguinte: Me diga 17 motivos para irmos embora para a Alemanha. Acha que consegue? - Sussurro.

- Isso é muito fácil. Se a gente ficar aqui eles vão te prender e te matar. - Diz-me com cautela.

Motivo número 4: Ela não quer me ver morta, e isso é raro nas últimas semanas.

- Continue. - Digo-lhe.

- Vamos ter uma sobremesa muito melhor.

Motivo número 5: Ela confia em mim.

Motivo número 6: É uma retardada. Acha que só podemos comer Apfelstrudel na Alemanha.

- Muito bom. Se você lembrar de mais alguma coisa me fale.

- Vamos esquecer que um dia já tomamos sorvete de flocos.

Quando ela me diz isso o tempo para e volto para aquele dia.

- Ei! Moça! - Um homem falou comigo. Eu virei-me para trás. - Você é a mulher da televisão. Essa menina nos seus braços ela é o bebê desaparecido. - Ele apontou para mim acusando-me.

- Está se confundindo. Eu quase me ofendi. Mas vou procurar esquecer. - Disse-lhe e sigo meu caminho.

- Não, dona, volte aqui. É ela! - Ele gritou.

Eu entrei no meu carro com a Lívia e saí o mais rápido que pude. Pelo retrovisor vi o rosto dele mais uma vez. Rosto este que eu não deixaria de ver tão cedo. Redondo, com uma densa barba de fios grossos e negros. Eu sabia que nossos caminhos se cruzariam de novo. Ele era do tipo que adorava ser o herói e subestimava a maldade das mulheres. Mas eu acho que foi a petulância de me perseguir que despertou em mim um ódio assassino pelo sorvetinho de flocos.

Ainda gosto de lembrar da cara de paspalho que ele ficou quando estava jogado no chão prestes a morrer. A confusão nos olhos dele mesclada com a tardia constatação de que foi uma tremenda burrice me subestimar, visto que ele sabia que eu era capaz de roubar uma criança.

Seguindo para o embarque tenho que lembrar minha filha de conter as risadinhas e especulações sobre a Alemanha.

- Está assim porque me pediu 17 motivos e eu te dei mais de 20. - Diz-me imitando uma voz de idosa.

Motivo número 7: Ela quer a Alemanha.

- Bom, vai ter que repetir alguns deles para mim. Acho que me distraí. - Digo-lhe engrossando a voz.

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