Imagine

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Fazem duas semanas que eu não mantenho contato com ninguém além de Kitty, que inclusive, não me arranhou (ainda).

Não sei quando estipulei regras na minha cabeça, mas elas estão estipuladas. Não atendi a nenhuma ligação, não retornei mensagens e não sai muito do apartamento além de fazer a quimio. Estava mais magra ainda, com mais hematomas e cada vez menos disposta. Ouvia os recados na caixa de gravação, colocava-os pra reproduzir porque não aguentava ficar sem a voz deles, era como um remédio.

Cliff mandava todo dia, as vezes até duas vezes por dia, perguntava sobre meu tumor e como eu estava indo na quimio, eram mais coisas sobre a doença, em particular ele me deu uma dura nas últimas mensagens por achar que eu estava morta caída no chão da sala. James me mandou algumas, talvez 5 no total, já foi bastante visto que ele não sabe do câncer. Falava sobre o que comeu, como eram os lugares, os dias de show, o palco, a plateia, as mulheres, a bebedeira e tudo de novo, também dizia que estava com saudades e fingia uma voz grossa perguntando por que ignorava suas ligações. Lars ligou umas duas ou talvez 3 vezes, e é sempre pra perguntar de Kitty e passar mais instruções, como se eu fosse matar a coitada. Kirk não me ligou, não deu nenhum sinal de vida.

Estava exausta, hoje de manhã tive mais uma quimioterapia, a terceira. Apenas mais uma daqui duas semanas e estaremos (ou não) prontas pra enfrentar a faca, eu e minhas células cancerígenas.

Não ia trabalhar, fiquei com pena de Flora e por ela ter que me pagar sem eu precisar dar as caras no bar, no fim das contas acham que estou grávida mesmo.

Acendi um cigarro, e sentei na varanda. Era de noite, e por algum motivo, estava mais trêmula, meus dedos estavam se chocando sem eu pedir. Colocava toda a culpa no tratamento mas não sei se estou indo bem de verdade, não ando sendo uma boa paciente, ando só eu e eu, como sempre foi.

Hora de planejar uma viagem: West Hollywood. Recuperar o contrabaixo. Mas hoje não, hoje estava vomitando pelos cantos e privadas.

... Cliff Burton

Já eram 23:30 quando terminamos a noite. A plateia era incrível, como sempre, me sentia num sonho e não queria acordar, jamais. Mas acordei, e não foi de um jeito muito bom.

Estávamos todos meio chapados, em especial Kirk e James, James era normal, mas Kirk... Ele exagerava, exagerava muito, estava exagerando desde que chegamos, as vezes tínhamos que o acordar nos tapas ou com baldes de gelo porque tinha dado o horário de outro show e ele ainda estava capotado na cama, louco de pílulas ou cristais, drogas pesadas. Sabe, todos usávamos, mas ele não seguia o limite, uma coisa aqui, uma coisa ali e acabou.

Fomos chamados por uma funcionária, gerente, sei lá o que ela era, mas lembro de ver alguém assim no avião em quê viemos. Ela parecia meio perturbada, seja o que fosse iríamos descobrir em minutos. Seguimos ela por um extenso corredor, já que eles arranjavam seus cantinhos com mesa de reuniões por dentro de todo estádio, então... Ela abriu uma porta e entramos em fileira, um por vez. James, Kirk, Lars e por fim eu. A porta foi fechada atrás de nós e então vimos bastante gente ali, na real tinham uns 5 ou 6, mas o lugar era pequeno então parecia lotado.

-Boa noite meninos.- Um homem grisalho disse, e eu já tinha o visto também. Estavam todos meio de bobeira, menos nós, parecíamos preocupados então ajeitei a postura deixando desleixada.

-O que é de tão importante pra não podermos descansar depois do show?- Lars cravou o nome dele.

-Podem descansar, existem cadeiras vazias aqui.-Ele disse apontando pros acentos que ficavam cara-a-cara com ele. Sem muito teor de querer arranjar briga ou reclamações, sentamos.

-Como já sabem, estão fazendo fama. Estão "na boca do povo", "fazendo dinheiro", essas coisas.- Ele parecia um empresário de merda com aquele tom. -Então seremos envolvidos em alguns escândalos as vezes, entendem?- Onde ele queria chegar? -Fiz uma careta, e ele suspirou, jogando uma revista em minha direção, que estava na cadeira da ponta.

Estiquei o amontoado de papel, e a capa não parecia nada demais até prestar atenção nos mini títulos nas bordas, e um deles me chamou a atenção. Abri na página 16, e sim, era horrendo. Ler cada palavra do texto era uma tortura. No final estava gago, sem saber o que dizer e como passar isso pros outros.

-Como...?- Eu estava paralisado e pensei em voz alta.

-O que? O que foi?- James do meu lado, arrancou a revista da minha mão e começou a ler junto a Lars, Kirk parecia deslocado e o grisalho percebeu, logo jogando uma pra ele também.

...

Lars e James estavam em pânico, andando de um lado pro outro no quarto de James. Eu estava encostado na parede, desviando o olhar deles, pareciam tristes, era verdade, eu também estava, mas meu choque já tinha passado, não era meu momento. Percebi Kirk, que me encarava do outro lado do aposento, sentado, e fiz uma coisa que nunca faço: Desviei o olhar, e ali estava feito, com certeza o cachinhos tinha me pegado na mosca. Ele levantou, normal, mas veio em minha direção que nem um furacão e eu não sabia fazer nada, não estava em posição de tentar nada. Parou à alguns centímetros de mim.

-Você já sabia, não sabia?- Me fodi. Não tinha pra onde correr.

-Sabia.

Kirk veio pra cima de mim, agarrou minha gola e tudo, eu estava pronto pra levar uma surra, não ia revidar, mas os loiros foram mais rápidos e entraram no meio. No fim, todo mundo tinha pelo menos os olhos lacrimejados. James tinha uma lágrima escorrendo, Kirk também.

Em um movimento bruto, Kirk se soltou das mãos de todos e saiu do quarto, James até tentou o impedir, o chamando, mas ele já tinha ido embora. Agora éramos nós 3 nos olhando, tristes e meio sem rumo.

-Então você sabia?

... Kirk Hammett

Ela não tinha atendido pela terceira vez, considerava a possibilidade de estar morta por algum tempo mas minha cabeça não acreditava, então decidi deixar um recado na caixa.

-"Peggy, oi, sou eu. Eu tô' agora em um bar com nome estranho, não sei pronunciar mas começa com M. Ficamos sabendo, daquilo, sabe? Você sabe do que eu tô' falando.
Eu tô' realizando os meus sonhos, não era pra eu me sentir tão mal por alguém que acabou me fazendo muito mal.
São 3 da manhã aqui, e chega a chover gelo. Ontem lembrei de você, por que um inglês me perguntou se eu tocava contrabaixo. Daqui de Liverpool não posso te contar nada do que você imagina, é previsível, óbvio, é como estar em um lugar criado por uma estética que a sua cabeça pensa antes de dormir ouvindo nomes de cidades pelo mundo. Liverpool existe mesmo? Tenho sentido muito a falta dos seus perfumes, as mulheres daqui não cheiram igual você. Tenho tido muitas dores de cabeça, muitas ressacas e muitos pesadelos, mesmo gostando de terror eu também preciso dormir. Tenho bebido muito, muito, muito."- Nessa altura, era difícil não chorar, então dei uma pausa e foi a gota d'água quando solucei, não podia mais segurar, o choro era nítido. -"Peggy. Eu tô' com medo. Por que não me contou? Como pôde não falar nada? Qual a sua pretensão com isso? Me afastar?"- Respirei fundo e comecei de novo, naquela mesma mensagem, dessa vez sem gritar, com a voz arrastada, rouca. -"Peggy eu não consigo te largar, eu tô' em um lugar incrível, rodeado de mulheres, bebidas e música, e eu não paro de pensar em você. Como você tá? Por favor me diz que você está escutando isso, que não vai me deixar, que já não me deixou, que vai ficar tudo bem. Retorne minha ligação, mas não nesse número, eu não sei onde eu tô' direito. Ligue pra algum dos outros, por favor, só apareça, nem que seja pra' falar pra' mim que não me quer mais, que nunca quis, ou que eu estou enchendo seu saco e te deixando nervosa por pensar nesse tumor. Eu amo você."

O limite foi alcançado e a mensagem enviada.

...

bjs até

Scandal - Kirk Hammett (Metallica)Onde histórias criam vida. Descubra agora